sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Um caso isolado


Algumas pessoas possuem um dom especial para a autodestruição. Por isso quando eu soube da morte de Rubens não cheguei a ficar completamente chocado. Os poucos amigos que ele tinha imaginavam que um dia algo assim pudesse acontecer. E olha, vou te confessar que me sinto culpado por não ter ido conversar com ele.

Duas semanas atrás, Rubens me telefonou. Pediu para eu passar por lá e levar comida. Estranhei aquele fio de voz, meio rindo, meio chorando, num emaranhado de falas sem sentido. Mas Rubens sempre foi um sujeito esquisitão. Falou pra todo mundo que iria se afastar para escrever um romance e não queria ser incomodado. Bom, eu fui parceiro até onde pude ser, disso ninguém vai poder me acusar. Atendemos o pedido dele. E nem poderia ser diferente, porque o cara exigiu aos berros, num tipo de surto, que o deixassem em paz até ele terminar o livro. Lembro bem. Estávamos os quatro amigos bebendo num boteco qualquer, sentados numa mesa na calçada. Para variar, fizemos piada da empolgação de Rubens. O cara realmente tinha um romance inteiro pronto dentro daquela cabeça alucinada. Costumávamos dizer que ele era genial. Lógico que isso o deixava ainda mais entusiasmado. A verdade é que achávamos mesmo traços de genialidade no que ele escrevia. Demos apoio. Incentivamos. Tomamos um porre memorável naquela noite...

E foi a última vez que vimos Rubens com vida.

Três meses depois, nada do livro. Tentamos contato, sem sucesso. Parou de publicar nos sites que participava. Não atendia telefone. Não respondia mensagens.

Um de nós poderia ter ido lá. No entanto, perdemos tempo num jogo de empurra. Cada um ficou achando que o outro iria. Ninguém foi. Ficamos preocupados, mas estávamos todos ocupados demais para pegar a estrada e ir até o lugar onde ele escolheu para se esconder. Aos poucos, esquecemos dele. Esta é a mais pura verdade.

Sei que isso é cruel de dizer, mas o sujeito era um doido e por causa dele quase fomos presos certa vez. Sem contar as muitas confusões em que nos metemos por causa de suas pirações. Melhor nem lembrar disso. Nossas vidas estão bem mais tranquilas agora.

De certa forma, empurramos ele para a morte. O cara não tinha grana. Não sabia cozinhar um ovo. Chegava a ficar dias sem dormir. Abusava do cigarro, da bebida e consumia uns chás para abrir as portas da imaginação. Devíamos ter discordado daquela maluquice de querer se enfurnar e se isolar do mundo.

E, veja bem, só estou te contando isso porque sei que me entende. Aliás, nas horas em que eu mais preciso, recorro a você, pois eu posso desabafar, sem ser criticado ou julgado.

Pois então, hoje ficamos sabendo que ele tinha telefonado para a polícia também. Dizem que ele sussurrou um pedido de socorro, depois ouviram um baque e mais nada. O plantonista que atendeu a ligação não deu muita atenção e não procurou localizar o endereço da chamada. Achou que fosse trote. Disse que é comum fazerem isso. Sem contar que trocara o turno com outro colega e virara a noite trabalhando. Além do sono e cansaço, tinha levado um fora da namorada, estava de saco cheio daquele emprego e de ter que ficar salvando pessoas que só faziam besteiras.

Ao menos, essa foi a explicação do plantonista para o descaso em acionar o alerta para socorrerem Rubens.

Talvez não houvesse mais tempo. Talvez ele fosse morrer de qualquer forma. Não se sabe. Esta é uma das tantas dúvidas que entrará para o rol das coisas jamais sabidas.

O fato é que quando enfim botaram a porta abaixo e entraram no pequeno e fedorento chalé, o corpo de Rubens jazia sobre a madeira gasta. Não se sabe ainda a real causa da morte. Falaram em parada cardíaca. Rárrárrá, como assim? Que diagnóstico genérico! O Rubens deve estar dando pulos de raiva (esteja onde estiver), porque detestava incompetência.

Talvez ele tenha morrido de inanição. Quem sabe teve uma das tantas visões psicóticas que costumava ter e acabavam resultando em textos espetaculares. Quem sabe. Dizem que o corpo estava só pele e ossos e o coração teria parado de bater por total falta de energia. Como uma máquina sem combustível. Como um pneu murcho. Como um balão esvaziado. Como qualquer coisa oca, sem nada dentro.

As suspeitas são de que ele ficou escrevendo até se esvair completamente. Levantaram essa hipótese, em razão do texto ainda em aberto na tela do computador. Depois do título “Uma Ode aos Bons”, estavam escritas duas mil, oitocentas e vinte e duas páginas. Um F encontrava-se em aberto no final do texto. Seria um efe de Fim? Não se sabe. Nunca saberemos se ele pretendia dizer mais alguma coisa. Especulo que sim, porque Rubens era demais para ele mesmo.

O pai de Rubens veio da Espanha para o enterro do filho. Quanto a mãe, falecera ao dar à luz.

Rubens morou um tempo com uma tia, até ser convidado gentilmente a procurar outro lugar para ficar. Foi quando passou a tocar em boates para conseguir grana suficiente para pagar a pensão mais ou menos limpinha onde foi se enfiar.

O pai de Rubens, que sempre o criticara e jamais dera valor a sua arte, pegou o arquivo e mandou para uma editora avaliar a obra. Resolveu fazer isso depois de ler as primeiras páginas e se impressionar com o talento do filho. O livro foi editado, dividido em várias partes, publicado com autoria póstuma e se tornou sucesso de vendas. Claro, o pai de Rubens abocanhou a grana toda.

Então, isso foi o que aconteceu. Guardaremos para sempre o segredo, a dúvida e a culpa. Eu e meus amigos não nos vemos mais.

Só mesmo a você, meu cúmplice, meu diário querido, posso revelar a verdadeira versão dos acontecimentos.

  

Um Feliz 2017 para todos nós! 😃💋
Obrigada a cada um de vocês pela companhia no ano que passou.

Desculpem a ausência. Fiz uma viagem de férias e agora aos poucos estou retornando aos meus hábitos e ritmo frenético de todo dia. rs


13 comentários:

  1. Boa noite! Sou mais poeta que prosador. Mas andamos no mesmo barco! Saudações literárias!

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  2. Eu me admiro com a fluidez da sua escrita. Que texto maravilhoso!
    (E são mil as teorias para a morte do Rubens...)

    Feliz 2017 para você ♥
    O Único Jeito

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  3. Oi Rosa
    As palavras fluem com uma nitidez e nos envolvem nessa trama exasperante aqui descrita como ficção mas quantos de nós já esqueceu ou isolou alguém e quando nos apercebemos o mal já estava e como no caso em questão irreversível
    Um conto belíssimo! Parabéns
    Um feliz 2017 para você
    Beijos

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  4. Olá Rosa, td bem? Feliz ano novo pra vc!
    Depois com mais calma eu volto para ler o seu conto, que com certeza deve ser maravilhoso! Tenha uma linda semana.
    Beijos.

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  5. Oi, Rosa!
    Tava sentindo falta dessa sua escrita maravilhosa. Mas a ausência foi por uma boa causa. Férias. Espero que tenha aproveitado bastante e que na bagagem tenha trago muitas histórias como essas.
    Adorei o texto, Rosa.
    Abrçs

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  6. Como está você, amiga? Ih, esse meu começo lembra a música de Roberto Carlos...
    Bem, você é mestre nessas doidices do ser humano, escreve com maestria. Mas a figura escreveu 2822 páginas? É, penso em inanição, ou um esgotamento ao extremo pela compulsividade na escrita... Um cara compulsivo vira noite escrevendo, esquece do banho e da alimentação.
    Sabe, existem muitos escritores que se isolam para escreverem, que coisa... isso não é vida, escreva, mas não esqueçam de viver! Olha eu colocando teu personagem na linha!!rs
    Mas querida amiga, que bom você de volta! Nós ainda nem tiramos nossas férias. Estamos sem lenço e sem documento, nada marcado, ainda.
    Bem, agora vê se coloca essa cabecinha para escrever, vida mais mansa!
    Beijo, saudades. Belo conto! Coitado do homem...

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  7. A vida imita a Arte e vice -versa...quantos gênios autênticos , quantos loucos visionários pelas ruas e pelos becos...estão por aí e em toda parte jogados pelas calçadas ou fechados em seu mundo interior... amigos, ora os amigos...
    Um abraço

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  8. Um magnifico texto... com muito da realidade dos nossos dias... a solidão vivida por muitos... mesmo tendo amigos...
    Um texto que dá que pensar!...
    Bom tê-la de volta, Rosa! Deixando um beijinho, e renovando os meus votos de um feliz e inspirado 2017 para você!
    Tudo de bom!
    Ana

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  9. Oi Rosa,
    Nossa! Fiquei encantada e ao mesmo triste pelo relato.
    Obrigada pelo carinho
    As crianças agradecem
    Beijos
    Minicontista2

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  10. Boa tarde, Rosa.
    Pois é, o Rubens precisava de ajuda e ninguém percebeu isso, assim sendo, morreu.
    Tão bom é viver na zona de conforto...
    Amigo respeita até um certo ponto o exílio do outro, quando este não está prestes a suicidar-se!
    Beijos na alma e excelente feriado.

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  11. Olá Rosa, td bem?
    Vim aqui te desejar uma ótima semana! Depois volto com mais calma pra ler o seu conto.
    Bjs

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  12. Olá Rosa, que relato triste, retrata a fragilidade do ser humano, Rubens morreu na solidão como preso num casulo, mas morreu talvez escrevendo,feliz? Uma trama muito envolvente e bem elaborada.
    Abraço!

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