
Nas
altas montanhas da província de Valáquia, o exército romeno comandado por
Velkan era dizimado nas mãos do inimigo. Exaustos, após longo trajeto
percorrido, haviam descido dos cavalos para descansar, quando ouviram barulhos
suspeitos. Os cavaleiros turcos os cercaram por todos os lados, empurrando-os
na direção de uma íngreme encosta.
Em número
reduzido, as tropas romenas avançaram para a morte, lutando contra o
impossível. Elmos saltavam das cabeças decapitadas. Lanças eram arremetidas com
força, atravessando as armaduras romenas. Lá embaixo, o rio Arax manchava-se em
desgraça com os corpos que sucumbiam ao desnível do terreno.
Romenos
e turcos disputavam territórios e glórias. Antigos desentendimentos, colhidos à
custa da queda de centenas de milhares de guerreiros destemidos. Exércitos
chefiados por líderes que nada temiam. Suas ordens arrebatavam os ares e eram
seguidas com valentia.
À
frente dos turcos, o imponente Kyfared, conhecido por seus combates
sanguinários. Suas tropas recebiam treinamentos embrutecedores. Do mesmo modo,
Velkan comandava os soldados romenos com mãos de ferro. Com menos da metade do
contingente turco, sabia estar em desvantagem. Tinha a seu favor a grande
compleição física de seus homens, comparada à baixa estatura dos oponentes. A
truculência dos soldados turcos e sua fúria selvagem não assustavam os gigantes
musculosos romenos.
Entre
os romenos, dois irmãos lutavam para se manter vivos — Izor e Rangrof. Desde
pequenos treinaram para fazer parte da legião. Orgulhavam-se em serem
cavaleiros do rei. Izor era dois anos mais velho que Rangrof. Apesar disso,
Rangrof é quem sempre o protegia. Havia uma ligação muito forte entre eles. Por
mais de uma vez, Rangrof salvara a vida do irmão, cuja coragem o colocava com
frequência em situações de risco. Sempre atento e com a mente serena, Rangrof
vigiava Izor e seus intempestivos passos. Agora estavam ali, os dois, na pior
das batalhas.
Em meio
a gritos de ataque e carnes rasgadas, poucos pensamentos rondavam aquelas
mentes guerreiras. Corpos se empilhavam por toda parte. Muitos agonizavam, com
aberturas terríveis, feitas por lanças atrozes. Embora feridos, com cortes
profundos, continuavam lutando. Daqueles golpes infernais, estranhos ruídos de
ossos partidos ouviam-se. Mas não havia tempo para saber de onde vinham. Nem
era preciso. Os turcos iam abatendo um a um, esmagando-os na direção da encosta.
Lufadas
de vento secavam os respingos de sangue de outras veias, instaladas na face de
Izor. Tentava, com esforço, manter-se firme, entre aquela tempestade de lâminas
que riscavam os céus e já haviam lhe atingido em várias partes do corpo. De
quando em quando, olhava para ver onde estava o irmão. O contínuo ataque o
impedia de acompanhar com os olhos a luta de Rangrof para sair-se com vida
daquela emboscada.
Cenas
terríveis ocorriam em todas as direções, numa luta que parecia não ter mais
fim. Sem os cavalos, os guerreiros romenos se protegiam com seus escudos, mas a
chance de saírem dali vivos diminuía a cada minuto. A milícia turca parecia ter
saído das sombras que se projetavam aos poucos no nevoeiro da montanha,
cobrindo a paisagem como um véu de trevas.
Enquanto
Velkan ordenava a seus homens que atacassem, ao mesmo tempo em que organizava
outras fileiras na retaguarda para os protegerem, evitando assim maiores
perdas, Kyfared avançava, fechando o cerco e massacrando-os por todas as
direções.
Empenhado
em salvar o maior número possível de soldados, o comandante romeno girou o
corpo por instantes para ordenar uma mudança de estratégia, quando o ar lhe
faltou repentinamente e o céu escureceu para sempre.
— Chegou
sua hora! — exclamou
Kyfared, triunfante, enterrando sua lança em Velkan, que nada disse, pois a
lâmina lhe atravessara a garganta.
Restavam
poucos homens em pé. Os turcos haviam derrotado os romenos e, em questão de
instantes, bradariam comemorando a vitória. Ferido, com talhos profundos, Izor
tentava bravamente revidar. Sem forças, girava em círculos empunhando sua
espada, sem conseguir acertar mais ninguém. E antes de curvar-se vencido diante
do inimigo, viu seu irmão, Rangrof, ao longe, numa situação semelhante. Caiu
desfalecido no rio.
Dado
como morto, Izor foi levado pela correnteza sobre centenas de cadáveres. Quando
recobrou a consciência, abriu os olhos e espantou os abutres que bicavam
famintos os seus ferimentos. O cheiro pútrido empesteara as águas. O ar ali
tornara-se irrespirável. Com dificuldade, afastou as carnes mortas dos aliados
de combate. Ergueu-se.
Izor
era um homem de semblante enérgico, alto, vigoroso, dotado de músculos fortes.
Assim mesmo sentiu-se enfraquecido, com o coração oprimido. Temia ser o único
sobrevivente. Uma verdadeira tormenta agitava-lhe os pensamentos. O irmão, de
sangue e de batalhas, vergara-se eternamente?
Com o sol
estalando na face, andou pela margem do rio procurando algum sinal de vida.
Afora o som dos pássaros que se alimentavam dos corpos, um silêncio abismal
imperava. Os turcos, ao que tudo indicava, haviam levado todos os cavalos e sem
montaria a viagem de volta até sua casa seria impraticável. Levaria cinco dias
caminhando ou mais. Porém antes de iniciar o retorno havia algo que precisava
fazer.
Entornou
a margem e escalou a encosta, escolhendo um trecho menos escarpado. Parou.
Apurou os ouvidos certificando-se de um possível ataque surpresa. Ao chegar ao
alto da montanha, onde antes uma intensa batalha ocorrera, nada encontrou com
vida. Chamou pelo irmão. Procurou por ele entre o cenário devastador. Nenhum
movimento, apenas pilhas de corpos mutilados. A visão era aterradora mesmo para
um soldado treinado como ele acostumado com a morte. Sentiu um gosto amargo na boca
ressecada pela sede e cortada pelas bicadas dos abutres. Uma onda de cansaço e
desolação o atingiu em cheio. As dores de seus ferimentos aumentaram. A
respiração saía com dificuldade. Estirar-se no solo parecia o melhor a fazer e
quase o fez recostar-se nos cadáveres decompostos e malcheirosos para recuperar
as forças e aguardar por reforços. Em vez disso, muniu-se das poucas energias
que lhe restaram e afastando com as mãos as moscas que zumbiam em seu redor
decidiu partir.
Sem
água. Sem cavalo. Sem comida. Estudou com atenção a montanha de corpos.
Observou que não haviam sido saqueados por completo. Pegou o que lhe fosse útil
e preparou-se para enfrentar o trajeto de volta para casa.
Alguns
quilômetros depois desabou. Encostou-se numa árvore de folhas grandes. Não
havia encontrado sobreviventes pelo caminho. Temendo deparar-se com o inimigo,
escolheu seguir por atalhos desconhecidos. Cansado, Izor adormeceu e rendido
por deliciosa miragem avistou Ione, sua delicada esposa. Os longos cabelos
acastanhados ondulavam ao vento quando ela corria para encontrá-lo ao voltar
das batalhas. Ione o esperava com o sorriso mais doce do mundo. O cheiro do pão
feito por ela encheu-lhe as narinas. O aroma das frutas no pomar. As risadas
dos filhos. O odor agradável da pele de Ione. Ahh,
esposa, estou chegando.
E foi
nesse momento delirante cujas imagens floresciam idílicas e lhe pareciam muito
reais que uma densa névoa lentamente encobriu os céus de seus devaneios.
Ainda
imerso em atmosfera irreal, Izor encrespou a testa, levando involuntariamente
sua mão à espada, preparando-se para o mal que estava por vir.
Uma
nuvem de poeira, acompanhada de um tremor que sacudiu o solo, confirmou o
pressentimento de Izor. Um vulto imenso surgiu. A maior criatura que já vira.
Reconheceu-a, apesar de nunca tê-la visto antes. Era o temido gigante da gruta
maldita que diziam existir do outro lado das montanhas.
Jamais
vira qualquer coisa parecida, embora já tivessem lhe contado histórias a
respeito. Até aquele dia julgava ser uma figura fantasiosa, inventada a mando
do rei para assustar o povoado a fim de não ultrapassarem as fronteiras. No
imaginário fértil de alguns, descreviam como um grande animal demoníaco,
indestrutível, com uma pele tão dura quanto dezenas de armaduras sobrepostas e
de cujas garras seria impossível libertar-se. Contavam que os gigantes somente
atacavam os vilarejos quando outras criaturas, negras, pequenas e voadoras,
invadiam sua gruta para sugar-lhe o sangue. E sempre que tal fato ocorria, o
gigante se enfurecia e saía para vingar-se, atacando qualquer coisa que se
mexesse.
Izor,
que nada temia, sentiu-se impotente diante daquela figura colossal que avançava
sobre o vilarejo, pisoteando e jogando os corpos para longe, como se fossem
pequenos brinquedos de madeira. Corriam, aos gritos, sem saber em qual direção
se esconder. Os arqueiros do rei, que protegiam os vilarejos, inutilmente
lançavam suas flechas sobre aquele monstro hediondo. Aos poucos a imensa
criatura ia triturando todos à sua frente, deixando para trás corpos
irreconhecíveis.
Uma
expressão de surpresa inundou o rosto de Izor ao perceber que Ione fora pinçada
por uma das mãos do gigante, enquanto tinha a pele dilacerada por aquelas unhas
que se comprimiam ao fechar a mão em calabouço.
Que
agonia sem fim era aquela que o engolia num poço de trevas?
Agitado
dentro daquele pesadelo e sem conseguir proteger sua família do ataque da
criatura gigante, assistiu ao massacre de todo o vilarejo. Brumas geladas o
dominaram ao ver que o gigante desapareceu em direção às montanhas após ter
capturado Ione. Queria lutar. Queria salvá-la. No entanto, suas pernas não se
mexiam. Suas mãos estavam dormentes. Sua fronte queimava. Seu corpo exaurido
vagava entre dois mundos. Parou de resistir e entregou-se ao sono profundo,
enfraquecido pela dor da perda daqueles que lhe eram mais caros. Deslizou para
o fundo de uma cratera escura, silenciosa, vazia de qualquer malignidade... e
por lá ficou.
— Izor!
Izor!
O
coração de Izor disparou violentamente. Abriu os olhos com esforço. Era Rangrof
que o sacudia.
— Irmão,
estás vivo! — exclamou
Izor, ainda confuso e entorpecido.
— Levante-se.
Vou ajudá-lo a chegar a casa – falou Rangrof.
Ajudado
por Rangrof, Izor continuou caminhando. E quando esmorecia, o irmão o erguia,
dava-lhe um pouco de água e nacos de pão. Seguiam o trajeto. Escorado no corpo
do irmão, Izor via o próprio corpo se movimentando sem acreditar inteiramente
que eram seus pés que pisavam o solo.
— Vou
desfalecer, irmão. Creio ter perdido todas as forças.
— Façamos
um descanso naquela sombra — disse-lhe
Rangrof —seguiremos depois.
Ao
vislumbrar o vilarejo, Izor abriu e fechou os olhos diversas vezes, até
acreditar tratar-se de uma imagem real. Respirou fundo. Agradeceu ao irmão e
abraçou-o, longamente. Sem ele não teria conseguido. Sem ele ainda estaria
jogado na estrada, preso entre doces quimeras.
Com os
olhos embotados, avistou Ione. Mais alguns passos. Um movimento, depois outro.
Os pés sangravam. Os olhos pesavam. E seu coração se abrandava. Sabia que após
a derrota sofrida na batalha contra os turcos grandes mudanças ocorreriam,
afetando a vida de todos. Mas agora só queria chegar a casa.
Apenas
uns metros. Em breve poderia entregar-se livremente à dor.
Podia
ver Ione correndo para encontrá-lo. Sorriu, tomado de satisfação. Em poucos
minutos sentiria o calor da esposa.
Virou-se,
para dividir sua alegria com Rangrof, estranhando o desaparecimento repentino
do irmão...
...cujo
corpo fora devorado pelos abutres, na beira do rio Arax.

Oi, Rosa, Brilhante e envolvente da primeira até a última linha...um final fantástico!
ResponderExcluirum abraço
Rosa, que história linda!
ResponderExcluirMe envolvi inteiramente na história desses dois irmãos.
Eu amoooo uma história de batalha. Essa foi do jeitinho que eu gosto.
Quero mais.
Abrçs
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Puxa, Rosa! Te superaste!" Beleza de enredo e história.Adorei! Obrigadão pelo carinho e vamos nos encontrando nos outros blogs. bjs,chica
ResponderExcluirAplausos Rosa, um conto com pitada de historias e um final interessante com este lado espiritual e visitas dos que foram.Escutamos muitos casos assim.
ResponderExcluirGostei da construção que nos faz ver as imagens ainda que horripilantes, sentir o mau cheiro, ver o monstro pisoteando tudo. Muito bom mesmo Rosa.
Meu terno abraço com um bom fim de semana.
CHAPELADA!!!!!
ResponderExcluirBjs, bfds
Parabéns Rosa! Texto superiormente escrito com ação muito envolvente.
ResponderExcluirBeijo
Muito bom o seu conto, Rosa.
ResponderExcluirUma narrativa envolvente e apreciei a leitura.
Grata pela partilha.
Um final de semana luminoso!
beijos.
Rosa um conto que nos prende até o final.
ResponderExcluirComo sigo a Doutrina Espirita,para mim os dois irmãos já encontravam-se em outra morada juntos a Ione,esposa de Izor.
Será que entendi!!
Adorei.
Bjs e obrigada pela visita.
Carmen Lúcia.
oi Carmen, obrigada pela leitura e comentário tão gentil.
ExcluirNão. Izor e Ione não morreram. Rangrof, sim. E graças ao espírito dele, Izor conseguiu voltar para casa.
Beijos.
Li até ao fim esse conto cativante
ResponderExcluirabraço
Incrível como tu consegues, escritora, passear de forma tão confortável entre vários estilos... dos romances aos nanocontos, dos contos épicos ao poemas....
ResponderExcluir... que bom de ler-te!!!!
História bem desenvolvida a amarrar o leitor do princípio ao fim.
ResponderExcluirÉ obra!
Parabéns
Um Conto que, verdadeiramente, é Conto. Não faltam ingredientes e prende a atenção até ao final.
ResponderExcluirMuitos Parabéns.
Beijo
SOL
Nossa... isso dá um filme! Essa luta de Izor para viver foi fantástica! E do começo ao fim não caiu a 'peteca' (nosso linguajar gaúcho, rs). Não conhecia esse teu dom de construir uma batalha tão feroz, uma carnificina. Cruzes!!! rss, to rindo de nervosa com tanta miséria humana. Mas somos assim, sem dúvida é a realidade. E fiquei pensando como podemos ser tão cruéis! A narrativa é perfeita, dos lugares, da exaustão e do final que ninguém espera. Dos abutres... virgem!
ResponderExcluirGrande beijo, querida amiga. Bom feriado!
To 'tocando' o livro, meu amigo de cabeceira!!! Depois falo.
Um excelente conto, com uma história incrível e muito bem narrada.
ResponderExcluirTens talento, parabéns.
Boa semana, querida amiga Rosa.
Beijo.
Olá, Rosa!
ResponderExcluirUm conto mto bem descrito, onde a lenda se confunde com a realidade.
Maldito gigante, hein! É tão importante a amizade e ajuda entre irmãos. Pobre Rangrof, que acabou morrendo. E vamos fechar a narrativa, imaginando que Ione e Izor foram felizes para sempre.
Beijos.
Uauu... que fôlego narrativo, Rosa!
ResponderExcluirFico feliz por tê-la conhecido :)
Vim agradecer sua participação no sorteio e já fiquei por aqui...
Vi que me enviou seu email com o endereço... assim que postar eu aviso, ok?
Bom restinho de feriado pra você!
Na verdade vi nos comentários você dizer que já havia enviado seu endereço pro meu email, mas fui conferir e não chegou nada. Confira, por favor: jussaraneves@hotmail.com
ResponderExcluirVocê diz que escreve para não deixar sua mente morrer. O meu motivo é semelhante: para não me perder de mim.
Abraço!
OI ROSA!
ResponderExcluirNÃO DEU NEM PARA PISCAR, NOS PRENDESTE DO INÍCIO AO FIM,QUE ALIÁS É SURPREENDENTE.
PARABÉNS AMIGA.
http://zilanicelia.blogspot.com.br/
Pois é Rosa, iniciei a leitura do teu conto um tanto relaxado, preguiçoso, pensando que a historia não me tiraria desse conforto, mas na medida que progredia na leitura fiquei um pouco agitado, o que não mudou até o seu final. Vi aí lutas pra gaúcho nenhum botar defeito. Uma história forte. Excelente conto. Um final surpreendente. O trecho dos abutres é forte. Parabéns.
ResponderExcluirAbraços. Pedro.