Lá do alto, a
pequena Agnes, acompanhada de sua bonequinha Bel, observa as casas enfeitadas
com abóboras iluminadas, esqueletos e outros adereços macabros.
Uma vez ao ano, na noite das bruxas, no dia
de seu aniversário, coisas pavorosas acontecem.
Agnes esconde um terrível segredo: Bel, não
é uma boneca como as outras. Não. Ela é diferente. Ela é doce, gentil e
carinhosa. Ela anda, fere e mata. E no dia seguinte, volta a ser uma inerte
boneca de pano como as outras.
Ninguém jamais entenderia os mistérios que
envolvem os poderes de sua vassoura mágica e as habilidades malignas de sua
amiguinha.
A própria Agnes também já desistira de
tentar compreender.
O começo - dia do aniversário
Na festa de quatro anos de Agnes, seu adorado
pai cantava parabéns, sorridente, batendo palmas, quando subitamente sofreu um
infarto e caiu morto sobre a mesa do bolo.
Houve gritos, choros, desespero.
Desligaram a música. Colocaram o corpo com
cuidado num sofá e chamaram socorro.
Tudo isso diante dos olhos da pequena
criança.
Deise, a mãe de Agnes, em choque,
empalideceu, tonteou, amparou-se em quem estava mais próximo e perdeu os
sentidos, aumentando ainda mais a preocupação de todos os presentes, com
tamanha tragédia, num dia que deveria ser festivo.
Esquecida por instantes, Agnes encolheu-se
num canto da sala, colocou as mãos nos ouvidos e ficou chorando quietinha.
Amava seu pai mais que tudo. Horas antes da festa ele a abraçara e dissera que
estaria sempre por perto quando ela precisasse.
“Mentira! Ele mentira!”
Fosse pelo trauma de ter visto o pai
falecer em sua frente ou por isto ter acontecido durante sua festa de
aniversário, o fato é que Agnes não foi mais a mesma. Sua primeira experiência
com a morte marcou precocemente o fim de sua inocência. Uma dor imerecida
cravou-se nela e nunca mais saiu.
Depois daquele dia, a avó de Agnes veio
passar um tempo com elas.
Vovó Mary se esforçava para colocar um
pouco de alegria no dia a dia da filha e da neta, mas a tristeza não deixava a
rotina das duas voltar a ser como antes.
Deise, por sua vez, fechou-se num mundo à
parte. Andava pela casa como se não enxergasse ninguém. Respondia o
estritamente necessário e assim mesmo depois de alguma insistência. Uma vez por
semana comparecia ao terapeuta e ficava durante os quarenta minutos com o olhar
distante, sem falar nada.
A dor da perda estava sendo difícil de ser
superada. Passava os dias olhando fotos, alisando as roupas do marido, falando
com ele como se ainda estivesse vivo.
Assim, com o luto recluso da mãe, Agnes só
podia contar com sua avó para lhe fazer companhia.
Algumas vezes pedia para vovó Mary lhe
contar histórias, mas logo perdia a vontade, dava boa noite, fechava os
olhinhos e fingia dormir, para que a avó saísse do quarto e ela pudesse chorar
sozinha até adormecer.
Na prateleira acima de sua cama, várias
bonecas e bichos de pelúcia permaneciam acomodados.
Queria tanto um amiguinho!
Agnes se sentia abandonada pela mãe,
incompreendida pela avó, traída pelo pai.
Ganhara de aniversário uma vassoura, um
chapéu e uma roupa de bruxinha. Presente de uma de suas tias que entregou a ela
rindo, querendo fazer graça, como por brincadeira, pelo fato dela ter nascido
no dia das bruxas.
Agnes achou engraçado na hora e se divertiu
correndo pela casa, imitando uma bruxa, voando em sua vassoura.
Mas isso foi antes. Agora, sem mais ter
vontade de brincar, encostou o presente atrás da porta de seu quarto e o deixou
esquecido por lá.
Pensou em criar um amigo imaginário com
quem pudesse partilhar segredos e dividir prantos e soluços, mas queria alguém
a quem pudesse abraçar, com cabelos compridos para ela pentear.
Olhou para as bonecas. Não sentiu amor por
nenhuma delas. Entristecida, abraçou-se a seu travesseirinho e pegou no sono.
Os meses seguintes foram uma sequência de
pesadelos noturnos, choros a qualquer hora do dia, fazendo com que vovó Mary
prolongasse por tempo indeterminado sua estadia naquela casa. A filha e a neta
ainda precisavam dela. Viúva, sem muitas preocupações, exceto por
regar suas plantas e alimentar seu gato, ambos deixados a cargo de uma querida
e gentil amiga, poderia tranquilamente permanecer por tanto tempo quanto fosse
necessário.
Frequentemente Deise esquecia de pegar
Agnes na escolinha, fazendo com que Mary ao ser avisada pela professora, corresse
a buscá-la, num esforço penoso, em razão de uma cirurgia no quadril que deixara
sequelas.
Quando tal fato ocorria, encontrava a neta
cabisbaixa na sala da diretora. Dava-lhe a mão, desculpava-se pelo atraso de
Deise e com um aperto no peito, controlava-se para não deixar rolar lágrimas de
pesar por tudo que a neta passava em sua pouca idade.
Horas depois, Deise aparecia em casa
afirmando ter esquecido o endereço da escola. Saíra andando a esmo pelas ruas e
mal conseguira lembrar o caminho da própria casa.
Coisas assim deixavam vovó Mary aturdida.
Por quanto tempo mais a filha viveria daquele modo? Cada um tem seu tempo de luto, mas Deise,
em vez de superar a morte do marido com o passar dos meses, parecia mais
ausente.
Vendo a carinha triste da neta, Mary
resolveu juntar retalhos e fios, chamando-a para juntas fazerem uma boneca de
pano.
Às vésperas de Agnes completar cinco anos,
aquele seria seu presente de aniversário.
Sentaram as duas no tapete da sala,
rodeadas por pedaços de panos de cores variadas. Linhas e agulhas, tesoura,
enfim, todo o arsenal necessário para fazerem uma linda boneca de pano.
Mesmo sem muita empolgação, Agnes separou
as cores de sua preferência e pediu para a avó recortar, costurar e deixá-la
ajudar a fazer o enchimento.
Ocuparam-se as duas por longas horas
confeccionando a boneca.
Ao vê-la pronta, Agnes não se conteve e
abriu um sorriso largo.
O primeiro sorriso, em meses!
— Bel.
Vou chamá-la de Bel, vovó.
— É um
lindo nome, meu anjinho.
Enquanto procuravam linhas para fazerem os
cabelos de Bel, notaram que não tinham fios de lã suficientes para um
comprimento longo de cabelo, como Agnes queria.
Mary prometeu que no dia seguinte compraria
um novelo da cor indicada por Agnes, para fazer o cabelo mais bonito que uma
boneca poderia ter. Não era isso o que a neta queria, porém, um dia a mais de
espera, que importância teria? Não fosse pelo entardecer da hora, cujas lojas
já se encontravam fechadas, iria com gosto em busca dos fios para alegrar a
neta.
Por fim, juntaram tudo, guardaram na
caixinha de costura e combinaram continuar na manhã seguinte, que seria o dia
do aniversário.
Agnes insistiu para ficar com o presente,
mesmo incompleto. Levou Bel para o quarto e colocou ao seu lado na cama. Finalmente, uma amiga para conversar!
Depois dos beijos de boa noite costumeiros,
vovó Mary se despediu contente com a animação inteiramente nova que vira surgir
no rostinho da neta.
Assim que ficou sozinha no quarto, Agnes abraçou
Bel, muito, muito, muito.
Tentou dormir. Em vão. Virava de um lado a
outro.
Não iria conseguir esperar até o dia
seguinte.
“Perdão, vovó.”
Silenciosamente, foi até à sala e pegou a
tesoura de dentro da caixa de costura. Sem fazer barulho, voltou para o quarto.
Fechou a porta. Olhou-se no espelho. Repartiu os cabelos em duas partes e puxou
para frente. Cortou seus longos fios castanhos e colocou-os sobre a cama.
Ao ver-se novamente no espelho,
estranhou-se. O corte irregular deixara pontas esquisitas, mas isso não tinha a
menor importância. Agora precisava costurar na cabeça de Bel. Ficaria lindo!
Deu pulinhos de alegria por não ter tido
medo de fazer o que acabara de fazer.
O relógio marcava um minuto de um novo dia.
Já era o dia de seu aniversário. Nem percebeu, pois estava concentrada em
costurar os cabelos na pequena cabeça de Bel.
Os fios desciam até próximo dos pés. Um
tanto longos, mas Agnes achou o comprimento perfeito. Assim, poderia fazer
vários penteados, pensou.
Como havia pouca linha da cor que
combinasse, costurou usando seus próprios fios. Espetou-se algumas vezes, o que
não a fez interromper o que estava fazendo.
Algumas gotículas de sangue penetraram no
tecido, encharcando por baixo de onde ela estava costurando.
Continuou sua tarefa. E só parou e deu-se
por satisfeita ao preencher toda a cabeça da pequena Bel, com longos cabelos
lisos e acastanhados. Agora sim!
Passou a mão tantas vezes sobre os
novíssimos cabelos de Bel, que sua mão ficou levemente aquecida.
Cansada e contente, deitou-se abraçada com
sua nova amiguinha e dormiu tranquila como há muito não dormia.
Ao acordar, sentiu mãozinhas em seu braço.
Achou que fosse impressão sua. Então, observou melhor e viu que ela se movia de
fato.
Assustou-se na hora. Pulou da cama e ficou
olhando para ter certeza.
Bel caminhava sobre o lençol, de um lado a
outro da cama.
Sob o olhar espantado de Agnes, a boneca
saltou e correu pelo chão até o canto do quarto. Subiu na vassoura,
esparramando seus cabelos sobre o cabo de madeira, que ganhou vida, como num
passe de mágica.
Agnes julgou estar sonhando, pois aquilo
não fazia sentido.
Bel era uma boneca de pano. E a vassoura...
era apenas uma vassoura.
Nesse instante, vovó Mary entrou no quarto,
trazendo uma bandeja com o café da manhã especial de Agnes.
— Feliz
aniversário, meu anjinho!
—
Vovó...eu...
— Minha
nossa, o que fez nos cabelos?!
Agnes não sabia se agradecia, pedia
desculpas, ou avisava sobre o que acontecera com Bel.
Enquanto hesitava entre uma atitude e
outra, Agnes espiava para o canto do quarto, atrás da porta, onde a boneca
ficara.
Os olhos de Bel, antes dois pequenos botões
pretos, agora brilhavam de um modo assustador.
Sem entender muito bem o que se passava,
Mary largou a bandeja sobre a cama e em seguida abriu a janela para clarear o
quarto.
E quando virou-se para indagar Agnes sobre
aquele horrível corte de cabelo, Bel, montada na vassoura, surgiu voando em sua
direção e atropelou-a, empurrando-a com
toda força janela afora.
Aterrorizada, Agnes disparou para ver se a
avó se machucara muito.
Como o quarto ficava no segundo piso, o
impacto foi fatal. O corpo de Mary caiu
sobre um roseiral e depois estatelou-se ao chocar-se com o cimento da calçada,
próximo à entrada da casa.
Novamente Agnes ficou sem saber o que
fazer, se devia brigar com Bel e colocá-la de castigo ou correr até o quarto da
mãe para contar tudo que ocorrera.
“Perdão, vovó.”
Alguém chamou uma ambulância e quando Agnes
abriu a porta da rua, uma multidão já se encontrava em volta do corpo da avó.
Deise tomara medicamento para dormir e só
foi acordar muitas horas depois, quando todos já haviam voltado para suas casas
e o corpo de Mary levado para algum lugar que Agnes não soube dizer para a mãe
qual era.
A queda foi considerada acidental e nem
chegou a haver investigação sobre o caso. Um dos vizinhos, solicitamente,
sabendo da situação em que Deise se encontrava, prontificou-se para cuidar de
tudo.
Mais uma vez o aniversário de Agnes foi
marcado pela tragédia.
Depois de viver um dia atribulado, ficando
a maior parte do tempo na casa da vizinha, Deise finalmente foi buscá-la. Parecendo em transe com a morte da mãe, nem comentou nada sobre o corte de cabelo da filha.
Agnes subiu em direção ao seu quarto, com
pensamentos misturados de admiração e medo. Devia fazer algo bem drástico para castigar
Bel, mas só conseguia pensar em como era magnífico ter uma boneca tão especial. E se pudesse controlar Bel? Talvez sua vida
monótona ganhasse um pouco de aventura. Sua
maior travessura até então tinha sido comer sorvete no quarto escondido da mãe.
Como seria agora, sem vovó Mary ali para
cuidar dela? Com quem iria conversar?
Procurou a amiguinha por todo o quarto. E quando
estava quase desistindo, notou dois olhinhos malvados espreitando-a entre as
bonecas e bichos de pelúcia, sentadinhos na estante.
Pegou Bel. Abraçou-a. Ajeitou-lhe os
cabelos e a roupinha. Deu uma bronca suave, pedindo a ela que não fizesse mais
malvadezas como aquelas. Bel encostou-se no colo de Agnes,
espichando o bracinho, carinhosamente.
Comovida, Agnes colocou-a sobre o
travesseiro. Vestiu seu pijama com estampa de tartaruguinhas e ficou alisando
os cabelos de Bel até pegar no sono.
*
Uma buzina lá fora fez Agnes despertar
mais cedo do que de costume.
Cutucou Bel para acordá-la também. E quase
chorou ao perceber que os olhos de sua boneca tinham voltado a ser dois
pequenos botões pretos.
Assim foi também nos dias seguintes. A
pessoinha temível desaparecera. Sua boneca de pano, voltara a ser uma
inofensiva boneca de pano.
A vida de Agnes voltou ao normal. A mãe
continuou esquecendo de buscá-la na escola. E ela ficava na sala
da diretora, aguardando.
Numa das ocasiões, a professora perguntou
se ela não ficava chateada por ter de ficar tanto tempo esperando. Agnes
respondeu que não, pois estava com sua amiga, Bel. Dizia isso e mostrava a
boneca.
*
Deise, lentamente ia se recuperando. Alguns
dias até trocava algumas palavras com a filha.
Agnes não chorava mais por causa do
alheamento da mãe. Nem tinha mais pesadelos ou medo do escuro. Agora ela tinha
Bel, sua amiga especial.
Queria muito que chegasse logo seu
aniversário de seis anos, para comprovar algo que suspeitava, mas não tinha
certeza.
Bel era uma verdadeira peste. Uma pestinha
adorável e má...muito má. E talvez algum tipo de feitiço acontecesse apenas na
noite das bruxas, fazendo com que seu lado malvado se manifestasse.
O lado malvado dela, Agnes.
Uma vez, vovó Mary tinha lido uma história
assim, onde a menina era enfeitiçada e passava a fazer coisas terríveis, depois
voltava a ficar boazinha.
Certas
coisas, Agnes ainda não conseguia entender.
*
Finalmente,
o momento tão esperado chegara.
Um
sorriso iluminou seu rostinho ao recordar as palavras da mãe, no dia anterior:
“Amanhã você poderá fazer o que quiser, filha. É um dia especial.”
E
naquela noite ficou acordando a todo instante, olhando para Bel, para ver se
ela estava se mexendo.
Vencida
pelo sono, cochilou abraçada em sua boneca.
Pouco
depois, acordou, sendo sacudida por Bel, com aqueles olhos funestos.
Ainda
estava escuro lá fora.
Agnes
sabia exatamente o que iria fazer. Pensara durante o ano todo.
— Vamos,
hora de brincar! – falou Agnes, com uma voz de dar medo.
Abriu a
janela. Subiu na vassoura com Bel e saíram às escondidas.
Sobrevoou
o quarteirão, procurando algo. Logo avistou a suntuosa mansão cor de pêssego.
Ali morava um esnobe e odioso menino chamado Tony.
Não
conseguia varrer de sua memória as palavras dele, no dia em que o encontrou no
setor de guloseimas, quando entediada fazia compras com a mãe: “Vai ficar
redondinha. Cuidado, hein, Agnezinha!”
“Ah, que
ódio! Que ódio!”
Fez a
volta até encontrar uma janela aberta. Entrou em uma pequena saleta. Escutou
roncos em aposentos próximos. Ótimo! Poderia ser dele. Poderia ser do pai dele.
Teria que arriscar.
Falou
baixinho no ouvido de Bel, descrevendo Tony e o que ela deveria fazer.
Bel saiu
da saleta e seguiu pelo corredor, entrando na segunda porta à esquerda. Aberta,
para sua sorte. Tinha bom faro para achar pessoas.
Do
bolsinho do vestido, Bel tirou um vidrinho com ácido e respingou algumas gotas em cima dos pés
de Tony. O menino gritou desesperado, dando pulos, sem saber como e nem porquê
e nem de onde tinha surgido aquele líquido destruidor.
Bel
retornou depressa para a saleta. Subiram na vassoura e desapareceram as duas no
meio da noite enluarada.
Num dos
dias em que ficou esperando pela mãe, Agnes pediu para ir ao banheiro e, antes de retornar para a sala da diretora, atravessou o pátio e entrou no laboratório da escola, onde as turmas de outras séries faziam experiências.
Foi onde pegou o vidrinho com ácido. Ninguém viu, nem suspeitou de nada.
*
Dois
dias depois, durante o café da manhã, a mãe de Agnes lê estarrecida a notícia
no jornal. O filho de um empresário conhecido da cidade, havia sofrido um
acidente misterioso em casa e encontrava-se hospitalizado, mas fora
de perigo.
— Que
horror! Pobre menino! — disse a mãe.
Agnes,
com seus olhinhos pequenos e frios, nada falou.
—
Querida, onde está sua boneca? Andam sempre juntas.
— Ela é
muito malvada, mamãe. Deixei de castigo atrás da porta.
— Filha,
você anda tão estranha ultimamente. E de agora em diante, não vai mais sair
sozinha para lugar nenhum, ouviu bem? A cidade está ficando muito perigosa. E
se você não me obedecer, ficará de castigo sem a sua boneca!
O
rostinho de Agnes se fechou. Ficar sem Bel seria a pior coisa do mundo. Não suportaria.
Assim
que a mãe se afastou, Agnes falou baixinho:
— Se ela me tirar Bel..., já sei do que eu vou brincar
no ano que vem.
*F *I *M
[o que Agnes fará no ano seguinte é
um mistério e deixo em aberto...
na imaginação de cada um]
*
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