Eis-me, debruçada
sobre a mesa, cuja madeira escura encontra-se áspera e fria. Carrego a sina de
ser uma porta aberta para espíritos mergulhados em penumbra indócil e martírios
infindos. Se tenho medo? Não. Há muito deixei de resistir e temer. Eles chegam
e partem. Não são perversos. Encontram uma abertura e choram suas dores. Eu os
escuto. Por que os rejeitaria? Sou útil para eles. E o que pode ser
mais gratificante que ter serventia a outros, nesta vida, ou além dela?
Encontrava-me
absorvida entre dois mundos quando senti uma aproximação hesitante. Serenamente
esperei por alguns minutos, ciente da presença de um espírito profundamente
angustiado e necessitando fazer contato.
Após um tempo de
espera, um leve roçar de dedos em meu ombro ganhou minha inteira concentração.
Coloquei as mãos sobre a mesa. Peguei a caneta. Ajeitei as folhas. Fechei os
olhos. Aguardei.
Estremeci
inteira ao ser invadida. Inexplicável. Algum dia, iria me acostumar em deixar
de ser eu? Talvez esta fosse a melhor parte, sentir verdadeiramente o que os
outros sentem, por mais doloroso que isso pudesse ser para mim.
Parei de pensar.
O espírito tomou posse e começou a escrever através das minhas mãos,
dominando-as, como se dele fosse.
Ah, minh'alma
inteira soluça, infestada de suores e delírios, tomada por roedores carnívoros, que
me despedaçam aos poucos, numa tortura sem trégua. Meus pensamentos são um
fosso turvo, onde despenco e não encontro proteção. Todos os medos sugam a
alegria que tenho e meus gritos não são ouvidos por ninguém. Estou isolada
e sem forças para seguir.
Não, não é culpa
de ninguém se não me encaixo nesse universo de verdades invertidas. Minha
voz silenciou e o pranto coagula em mim. Oh, se eu soubesse que a morte me
traria descanso, acabaria com esse tormento de uma vez por todas. Ao que
parece, será este meu fado.
Rastros diabólicos
circulam em minhas veias, necrosando todos os risos de outrora,
empurrando-me para ínvios caminhos, estreitos como um claustrofóbico corredor. Infectada
de angústias ocultas, me desespero e esmago o ornamento da mesa. Deixo murcho -
assim como eu.
Alguém, por
favor, ajude-me! Tenho lançado meus lamentos - em vão. Não percebem? Estou
doente! Minhas palavras são o que sinto. Enquanto sorvem minhas linhas poéticas,
eu definho e desapareço um pouco em cada verso.
Não sou mais o
que eu era, podem me jogar ao vento!... Sou cinza! Sou pó! Sou nuvem! Tampouco
sei o que sobrou. Meus olhos estão cansados. Minhas vontades ressecadas. Nas
profundezas de minha mente aturdida, demônios e dragões fizeram morada.
Como podem não
enxergar tantos monstros me devorando?
Tenho medo, pois
não sei mais diferenciar nocivo de inócuo. Há muito sucumbi a desvarios
tortuosos. Atormenta-me uma tristeza bestial, advinda de todas as saliências
falidas e reles.
Sim! Por todos
os lados, línguas púrpuras de fogo crispam e roçam sinuosas em meu pescoço,
girando e girando, maltratando minha carne, cruelmente ferindo, tal qual arame
farpado.
É um íngreme
combate, travado sem travas. Uma áspera luta que irrompe sem romper e com unhas
pontiagudas dilaceram meu dorso, descerrando enigmas em calabouço.
Meu corpo cai
num abismo insondável, um despenhadeiro de eternas miragens. Posso sentir
minhas artérias ungidas em bálsamo quente, como lavas incandescentes,
desolando-me em rios de aflições intermináveis.
Ah! Dentro de
mim, a tristeza me consome. Um mundo de trevas sufoca minh’alma, que grita e
geme como o som de harpas frias. E eu vejo meu sangue escorrendo pelas cordas,
velando o fim de uma vida miserável.
Perdoai-me,
todos vós! Insuportável angústia me leva a beber poções e ingerir cápsulas de
exacerbadas melancolias.
As lágrimas
agora escorrem livres. Fecho os olhos e espero o final. Estou pronta. Despeço-me
deste mundo que nunca foi meu. A morte me chama e eu a seguirei em busca de alívio.
Enquanto ela não
chega, sinto o medo correndo entre meus labirintos, com sua cauda gigantesca e
destrutiva, contaminando minha corrente sanguínea.
A agonia está
perto de acabar.
Vou descendo
mais e mais no vazio, num poço de lama pegajosa e escura, que salta esfomeada
sobre as parcas sobras de luz que restaram em mim.
E o medo segue,
passeando inexorável, rastejando-se pelo breu de minh’alma agonizante, até o
instante em que não sinto mais nada.
Ouço ao longe o
meu próprio suspiro fatídico. Encerro minhas dores, meus amores, meus pedidos
de socorro não ouvidos.
Ainda há tempo
de segurar minha mão! Alguém, por favor, ajudai-me!!!
Mas tudo o que
ouço é o silêncio. Ninguém aparece. Ninguém me salva. Por quê? Por que não me
resgataram?
O cerco agora se
fecha. O ar se esgota. E em meu rosto desce a última lágrima.
* * *
Exausta, desfaleço.
Quando retorno, vejo-me estendida ao chão. Sento-me e recupero o fôlego. O espírito
se foi.
Noto as
folhas inteiramente preenchidas de palavras vertiginosamente discorridas.
E embaixo do
texto, a assinatura do espírito — Florbela Espanca.
Demoro para
compreender o que houve. Custo a crer quem de fato esteve em mim e
desafogou suas dores.
Passo minhas mãos
sobre aquele desabafo e choro convulsivamente.
A mesa agora está
morna e plácida, como eu.
* * *
Amar!
[...]
E se um dia
hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar
Florbela
Espanca [1894-1930]
Espíritos que se aproximam sejam de luz ou não,deixando suas mensagens através daqueles que vieram com essa missão.
ResponderExcluirE eu acredito,pois sigo a Doutrina Espirita de Allan Kardec.
Gostei muito de ler Rosa.
Bjs-Carmen Lúcia.
Quando espíritos deixam as suas mensagens pedindo socorro, creio que devemos orar, orar muito para poder ajudar este pobre espírito sofredor.
ResponderExcluirQue Deus lhe abençoe.
Não sou de pregar religião, mas acho que se Deus existe e vem por aqui, é através da nossa fé. A sensação que sinto quando faço uma oração não tem definição. Não acredito que existam espíritos.
ResponderExcluirIntenso... inclusive gosto da intensidade da Flobela Espanca ;-)
ResponderExcluirSoou real, sincero...
Beijos.
Não tenho medo de nada pois tenho premunição do que vai acontecer, mas não posso fazer nada. Acontece e pronto.Adorei a postagem, poetisa.
ResponderExcluirBeijos
Minicontista2
Eu sempre creio ao ler algo bonito e bem construído, de que Deus veio colocou sua mão sobre a do poeta e assim esta sua construção em dois tempos ficou maravilhosa, e fecha com uma Florbela.
ResponderExcluirSó aplausos amiga.
Bjs de paz.no bom fim de semana e que outras mãos toquem seu ombro.
Muito bem imaginado e muito bem escrito.
ResponderExcluirOs meus parabéns.
Bfds
Nossa... Tristemente belo esse grito de socorro, essa angústia que parecia infinita, mas finita foi. Ao ler fiquei pensando na intensidade das dores que não são físicas, mas chegam a um ponto de insuportáveis. E assim era Florbela, deixou muita dor seus poemas; como era complexa, sofrida... Só aplausos a você Rosa!
ResponderExcluirUm beijo, querida.
Uma mensagem muito forte, extremamente bem escrita!
ResponderExcluirBj
Intenso e expressivo conto com um toque de tristeza, apavorante dentro de uma linguagem poética. Parabéns e um belo fim de semana.
ResponderExcluirOi, Rosa, que contundente pedido de socorro! Se foi construção literária é soberba e ousada. Se foi realizada à luz do real é também impressionante...De qualquer forma ma faz lembrar a citação atribuída a Shakespeare : há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. Parabéns pela qualidade do texto e também pela ousadia.
ResponderExcluirUm abraço
Amigos queridos,
ResponderExcluiraos que ficaram em dúvida sobre o processo criativo desse conto, quero dizer que é puramente ficcional e foi escrito em primeira pessoa e num estilo psicografia, com toques poéticos, para ficar o mais realista possível.
A história de vida de Florbela Espanca me impressiona tanto quanto a grandeza de suas obras. Ela gritava suas dores em seus poemas. Tentou três vezes dar cabo de sua vida.
Imaginei como teria sido os seus momentos finais e tentei expressar em palavras toda a dor e desespero e aflição e solidão e falta de esperança... sentida por quem desiste de viver.
Obrigada pelas leituras e comentários.
*beijos e abraços*
Este texto é um excelente conto.
ResponderExcluirNão só pela narrativa, mas também porque contém uma pequena história aproveitada de uma forma inteligente.
Rosa, tem um bom domingo.
Beijo.
Olá,Rosa...boa noite...muitas pessoas se sentem como o personagem : querem pôr um fim ao seu sofrimento e tem uma certa dificuldade em organizar as ideias de maneira efetiva e sentindo-se estranhamente perturbado, fazem uso do poder catártico da escrita.Conseguem tão bem transcrever o que sentem, que custam a crer quem de fato esteve em si e desafogou suas dores em forma de escrita , que parece que ter sido psicografado sob a inspiração de um espírito ... por outro lado, algumas delas até tentam o suicídio- Florbela é um exemplo- e nesse caso, não querem pôr um fim à própria vida; na verdade, o que precisam é de uma razão para viver...e escrever é uma bela "razão" para viver>se sentir vivo! Belo conto!
ResponderExcluirBela semana,belos dias,abraços!
Oi, Rosa!
ResponderExcluirUauu!! Fiquei toda arrepiada com esse texto.
Com certeza é um excelente texto, minha amiga.
Cada vez me apaixono mais por sua escrita.
Abrçs
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Um texto ficcional, que terá captado muito bem a atormentada alma de Florbela!...
ResponderExcluirBelíssimo trabalho, que nos prende às palavras desde o início!
Parabéns, Rosa! Adorei, esta surpreendente e notável inspiração!
Beijinhos! Continuação de uma boa semana!
Ana
Um narrativa interessante em que seu eu-lírico consegue se desmontar, surgindo, assim, duas personagens. Uma, k já se acostumou a "servir" os outros, embora com suas alegrias e tristezas, e uma outra, mto sofrida, mto infeliz, k é apresentada aqui como Florbela Espanca, que teve um vida mto turbulenta, já desde seu nascimento. Todavia, em minha opinião, nós podemos alterar o percurso dos acontecimentos, que de nós dependem, e ela nada fez para isso.
ResponderExcluirBeijos e bom fim de semana, Rosa!