segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Dora


Mirou-se no espelho da sala e viu-se tão cheia, mas tão cheia, que lá do fundo de sua autoestima abalada, emergiram suspiros redondos, que saíram feito rosquinhas de fumaça, expelidas da boca de um fumante.

Já estava na hora de trocar aquele espelho com moldura antiga de vime, por um quadro agradável de olhar, com uma bela paisagem campestre, por exemplo.

Não se reconhecia na imagem que o espelho refletia.

Deu alguns passos pesados para trás, resmungando para si mesma:

“Quem te viu e quem te vê, hein, Dora?”

Sim, parecia inacreditável, mas aquele corpo roliço já fora esbelto um dia. E fizera os homens assobiarem encantados, atiçados pela leveza e elegância de seu balanço de quadris, sua cinturinha fina, seu movimento de pernas longas e torneadas, seu empinar de seios sob o tecido macio do vestido, quando passava por eles nas ruas.

Mas hoje...o peso dos anos a empurrara para bem longe daquela figura longilínea e fininha de outrora.

Lutava contra o sono. Esforçava-se para manter-se em pé. O olhar pesa­do e as olheiras escuras, denunciavam suas três noites maldormidas. Devia ser efeito colateral dos medicamentos para emagrecer. Dietas malucas a estavam enlouquecendo. Oito meses tomando regularmente remédios controlados. E ao invés de perder peso, perdera o sono, a disposição e a força de vontade. Só não perdera o apetite.

“Como deixou isso acontecer com você?”

Sabia muito bem o responsável por sua transformação: o casamento.

Tinha apenas vinte anos quando casou-se com Raul. Nessa época, pesava exatos quarenta e nove quilos, proporcionais para sua altura de um metro e sessenta. O marido era magro e tinha um metabolismo invejável, pois embora tivesse um apetite voraz e repetisse os pratos que ela preparava, não engordava um grama.

Dora, empenhou-se em aprender o preparo de novas receitas, para agradar ao marido e vencer uma competição não declarada com sua sogra, que cozinhava bem demais. Raul vivia exaltando a comida da mãe. E após provar os pratos servidos pela esposa, comentava não estarem assim tão bons quanto os que sua mãe fazia. Isso a entristecia mais que qualquer outra coisa. Às vezes Raul avisava que iria almoçar na casa da mãe, para matar as saudades. Mas Dora sabia que na verdade o marido sentia falta era do tempero da comida da mãe. Notava a reação dele, a cada refeição servida.

Se um repórter a entrevistasse e perguntasse qual o seu maior sonho, responderia sem pestanejar: “que meu marido me diga que eu cozinho melhor do que a mãe dele”.

Assim, a vida de casada prosseguia sem grandes novidades, exceto por sua ânsia obsessiva em prender o marido pelo estômago.
Por sua vez, Raul continuava seus hábitos de solteiro, saindo com amigos e ficando até tarde no bar. Bebia demais. Chegava tarde. Algumas vezes tão bêbado que iam levá-lo em casa. Mas Dora amava o marido e tinha um coração gigantesco. Todos têm defeitos... Dos males o menor, pensava.

Caseira, dedicando-se apenas ao lar, Dora costumava usar vestidos soltos, para sentir-se mais à vontade. Afinal, estava em casa. Por isso, só percebeu o quanto engordara, quando foi comprar roupas para a festa de casamento de um dos amigos de Raul. Seu número habitual não servia mais. Despreocupada, comprou um tamanho maior e não pensou mais no assunto.

Raul passou a levá-la em restaurantes. Trazia lanches suculentos. Enchia a geladeira de bolos, refrigerantes e sorvetes. Dora adorava e se sentia paparicada. Do nada, o marido mudou o comportamento e passou a cumprimentá-la pelo sucesso na cozinha. Mesmo quando queimava o feijão ou tinha certeza que o ar­roz ficara uma papa, Raul elogiava. E incentivada pela satisfação do marido com suas receitas, esmerava-se para surpreendê-lo a cada dia com um prato novo.

Quanto mais Raul elogiava suas tortas, lasanhas e assados, mais se dedicava a fazer novas gostosuras, para receber dele um olhar de aprovação. Seu momento glorioso era quando Raul provava um dos pratos e dizia que jamais comera algo tão saboroso.

Um dia, finalmente, escutou o suprassumo dos cumprimentos: “nem minha mãe faz uma comida tão gostosa, Dodô”. Derreteu-se por dentro. Abriu um largo sorriso. E mesmo consciente que ganhara vários quilos por conta da saga em conseguir ganhar o maior dos maiores de todos os elogios, continuou comendo e comendo. Já não ficava mais tanto tempo na cozinha, pois Raul abastecia a geladeira com tanta fartura, que não havia necessidade de ficar em frente ao fogão.

E foi inflando, inflando... E Raul trazendo mais e mais comida para casa. Quando Dora ameaçava fechar a boca, para perder uns quilos, o marido a fazia mudar de ideia. “Você nunca esteve tão linda, minha Dodozinha”. Assim, vendo que seus quilinhos extras deixavam o marido satisfeito, ela passou a comer ainda mais. Só ela engordava. Raul continuava magro. E para sua felicidade, mais apaixonado por ela do que nunca. Dora sabia que tinha ultrapassado todos os limites do bom senso, em termos calóricos. Mas bastava se recusar a comer qualquer alimento, para o marido fazer uma expressão de decepção. Então, comia. Comia para agradá-lo. E continuava engordando. Os pés incharam tanto que nenhum calçado entrava neles. Andava descalça pela casa, vestindo uma túnica imensa.

Ficou intrigada quando um dia Raul chegou em casa com uma balança e pediu que ela se pesasse. Achou esquisitíssimo. Olhou enviesada para ele. Queria mais era distância de balanças, ora. Não! Não iria se pesar. Para que aquilo? Por acaso agora o marido iria controlar seu excesso de peso? Ele não tinha dito que ela estava ótima? Mas Raul insistiu. Então, a contragosto, ela subiu na balança. O ponteiro disparou. Não era possível! Com dificuldade, olhou para baixo. Teve de se encurvar e abrir um pouco as pernas para espiar o número. A balança marcava 151 quilos! Raul tirou uma foto. Aliás, várias fotos. Dora desceu da balança aos prantos. “Não fica assim, Dodô, a balança deve tá desregulada”. Nada resolvia. Dora estava inconsolável. Inquieto, Raul disfarçou uns minutos, depois beijou as bochechas redondas da esposa e saiu.

Horas depois, quando ela já estava deitada, escutou um barulho de motor. Não tinha mais a mesma agilidade de antes. Deitar e levantar eram atos custo­sos para ela. Achou que um dos amigos havia trazido Raul para casa, como de costume.

Se tivesse espiado pela janela, teria visto uma camioneta estacionada na porta da casa. E teria estranhado e indagado Raul, pois eles não tinham carro.

O que Dora não sabia e demorou a descobrir, foi que Raul havia feito uma aposta com um amigo. Haviam bebido além da conta, é verdade, mas no dia seguinte, já sóbrios, os dois se encontraram e reafirmaram o combinado. O amigo tentou voltar atrás, se fazendo de esquecido e argumentando ter sido apenas brincadeira, mas Raul insistiu, afirmando que trato é trato e homem que é homem não arrega na palavra empenhada.

Tudo começara com uma conversa de boteco, onde o assunto levantado por Raul era que o casamento engordava mais as mulheres do que os homens. O amigo discordou. Para ele os homens casados passam a comer melhor e o corpo atlético desaparece em poucos meses. Falou isso e apontou os dedos para a própria barriga, bem saliente, confirmando sua teoria. E ficaram citando alguns nomes, lembrando o visual deles e fazendo comentários sobre como eram quan­do solteiros e como estavam agora depois de casados. E nessas comparações de “antes e depois”, Raul enfatizou que ele era uma exceção então, pois continuava franzino como sempre fora. E Dora, frisou, mantinha o mesmo corpinho enxuto de quando a conhecera.

Cheio de cachaça na cabeça, enrolado numa acalorada discussão sobre o tema e vendo Raul gabar-se de que sua teoria era fajuta, soltou um desafio: “duvido que você faça sua esposa engordar!”. Gargalharam. Raul largou o copo. Perguntou qual seria o prêmio. “A camioneta zerinho que acabei de comprar”. Ambicioso, Raul fez o amigo repetir, por julgar não ter escutado direto. O amigo repetiu. Afirmou que sim, o prêmio seria aquele mesmo. Raul encheu o copo. Tomou a pinga num gole só. Viu ali a oportunidade de melhorar de vida. Poderia vender o carro e comprar uma casinha para eles e deixar de morar de aluguel. Enrolando a língua, quis saber os termos daquela aposta. Gargalharam outra vez. A conversa parecia surreal. O amigo pensou um pouco e respondeu: “tem que fazer sua mulher engordar 100 quilos em seis meses”. Como o amigo tinha certeza que Raul perderia a aposta, fecharam o acordo. Apertaram as mãos. Raul nem questionou sobre o que ele teria que pagar caso perdesse, pois via como fato certo a sua vitória. A camioneta estava no papo. Ele ganharia, com certeza. E ainda fez o amigo jurar que circularia o mínimo possível, para economizar o objeto da aposta.

A separação foi um golpe inesperado para ela. Raul fez as malas e foi embora naquela mesma noite. O motivo? “Você tá uma baleia, não sinto mais desejo por você”.

Dora ficou chocada. Passou mal. Chamou os vizinhos. Teve de ser internada. Não podia acreditar no que escutara. As palavras de Raul ecoavam em seus ouvidos de uma forma torturante. A mãe de Dora a levou de volta para casa. E durante anos viu a filha entrando e saindo de clínicas, tentando perder peso, sem sucesso. Os móveis do apartamento tiveram de ser adaptados, para suportar o peso de Dora. Ao invés de um colchão de molas, colocaram em seu quarto um colchão de ar, bem resistente.

E quando a mãe de Dora faleceu, a filha ficou no apartamento, reclusa.
[...]

[este texto é parte integrante do romance O medo de Virgília
{Dora é vizinha de Virgília e tornam-se amigas}

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8 comentários:

  1. Pobre Dora.Credo e que animal de marido foi Raul! Um verdadeiro asco, um verme que não merecia ser feliz nunca mais na vida!" Fiquei curiosa! Adorei te ler! bjs, tudo de bom,chica

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  2. Oi Rosa
    Coitada da Dora o excesso de elogios cegou-a e ela não percebeu o quão canalha era o Raul. Um homem desprezível e sem escrúpulos. Um conto instigante ; Amei ler a tua criação minha querida
    Beijos

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  3. Bem interessante e instigante...realmente o desejo de agradar é uma armadilha. Você sabe prender o leitor.
    Parabéns!
    Um abraço

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  4. Muito envolvente sua história Rosa, inevitável não despertar uma imediata curiosidade acerca da continuidade da história, do envolvimento com Virgília.

    Também inevitável não pensar em Raul como um canalha materialista que destruiu seu casamento e a vida de sua esposa por causa de uma camioneta. Senti muita pena da Dora.

    Beijos

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  5. Olá, Rosa!
    Adorei o conto. Não sabe o ódio que eu estou do Raul, que homem ordinário! E que pena eu fiquei da Dora. Ele deveria amar muito o marido para ver que estava engordando e não se importar com isso só porque o marido dizia que ela estava linda.
    Parabéns pelo conto. Aguçou minha vontade de ler O medo de Virgília para saber mais sobre a amizade das duas.

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  6. ⋰˚هჱ⊱

    Nossa! Isso é um alerta para mulheres que não tem auto-estima... ninguém merece um marido desses!

    Muita paz, muita saúde e muita harmonia nesse fim de semana!!!!
    Beijinhos do Brasil
    ╰╮هჱ⊱

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  7. Miga Rosa Mattos, hoje é o seu dia,
    tinha que vir aqui deixar uma palavra
    hoje e sempre, seja muito feliz, sorria
    de dor não deixa cair dos olhos nenhuma lágrima,
    de alegria deixa elas correrem pelas faces à vontade
    para você no pensamento envio uma flor
    em sua companhia tenha a felicidade
    sempre com carinho e muito amor!

    Tenha um bom dia de domingo
    e tudo mais o que desejar, um beijinho.

    Para todas as mulheres desejo,
    hoje e sempre que sejam muito felizes.
    Eduardo.

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