quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Desabafos do além


Eis-me, debruçada sobre a mesa, cuja madeira escura encontra-se áspera e fria. Carrego a sina de ser uma porta aberta para espíritos mergulhados em penumbra indócil e martírios infindos. Se tenho medo? Não. Há muito deixei de resistir e temer. Eles chegam e partem. Não são perversos. Encontram uma abertura e choram suas dores. Eu os escuto. Por que os rejeitaria? Sou útil para eles. E o que pode ser mais gratificante que ter serventia a outros, nesta vida, ou além dela?

Encontrava-me absorvida entre dois mundos quando senti uma aproximação hesitante. Serenamente esperei por alguns minutos, ciente da presença de um espírito profundamente angustiado e necessitando fazer contato.

Após um tempo de espera, um leve roçar de dedos em meu ombro ganhou minha inteira concentração. Coloquei as mãos sobre a mesa. Peguei a caneta. Ajeitei as folhas. Fechei os olhos. Aguardei.

Estremeci inteira ao ser invadida. Inexplicável. Algum dia, iria me acostumar em deixar de ser eu? Talvez esta fosse a melhor parte, sentir verdadeiramente o que os outros sentem, por mais doloroso que isso pudesse ser para mim.

Parei de pensar. O espírito tomou posse e começou a escrever através das minhas mãos,  dominando-as, como se dele fosse.



Ah, minh'alma inteira soluça, infestada de suores e delírios, tomada por roedores carnívoros, que me despedaçam aos poucos, numa tortura sem trégua. Meus pensamentos são um fosso turvo, onde despenco e não encontro proteção. Todos os medos sugam a alegria que tenho e meus gritos não são ouvidos por ninguém. Estou isolada e sem forças para seguir.

Não, não é culpa de ninguém se não me encaixo nesse universo de verdades invertidas. Minha voz silenciou e o pranto coagula em mim. Oh, se eu soubesse que a morte me traria descanso, acabaria com esse tormento de uma vez por todas. Ao que parece, será este meu fado.

Rastros diabólicos circulam em minhas veias, necrosando todos os risos de outrora, empurrando-me para ínvios caminhos, estreitos como um claustrofóbico corredor. Infectada de angústias ocultas, me desespero e esmago o ornamento da mesa. Deixo murcho - assim como eu.

Alguém, por favor, ajude-me! Tenho lançado meus lamentos - em vão. Não percebem? Estou doente! Minhas palavras são o que sinto. Enquanto sorvem minhas linhas poéticas, eu definho e desapareço um pouco em cada verso.

Não sou mais o que eu era, podem me jogar ao vento!... Sou cinza! Sou pó! Sou nuvem! Tampouco sei o que sobrou. Meus olhos estão cansados. Minhas vontades ressecadas. Nas profundezas de minha mente aturdida, demônios e dragões fizeram morada.

Como podem não enxergar tantos monstros me devorando?

Tenho medo, pois não sei mais diferenciar nocivo de inócuo. Há muito sucumbi a desvarios tortuosos. Atormenta-me uma tristeza bestial, advinda de todas as saliências falidas e reles. 

Sim! Por todos os lados, línguas púrpuras de fogo crispam e roçam sinuosas em meu pescoço, girando e girando, maltratando minha carne, cruelmente ferindo, tal qual arame farpado.

É um íngreme combate, travado sem travas. Uma áspera luta que irrompe sem romper e com unhas pontiagudas dilaceram meu dorso, descerrando enigmas em calabouço.

Meu corpo cai num abismo insondável, um despenhadeiro de eternas miragens. Posso sentir minhas artérias ungidas em bálsamo quente, como lavas incandescentes, desolando-me em rios de aflições intermináveis.

Ah! Dentro de mim, a tristeza me consome. Um mundo de trevas sufoca minh’alma, que grita e geme como o som de harpas frias. E eu vejo meu sangue escorrendo pelas cordas, velando o fim de uma vida miserável.

Perdoai-me, todos vós! Insuportável angústia me leva a beber poções e ingerir cápsulas de exacerbadas melancolias.

As lágrimas agora escorrem livres. Fecho os olhos e espero o final. Estou pronta. Despeço-me deste mundo que nunca foi meu. A morte me chama e eu a seguirei em busca de alívio. 

Enquanto ela não chega, sinto o medo correndo entre meus labirintos, com sua cauda gigantesca e destrutiva, contaminando minha corrente sanguínea.

A agonia está perto de acabar.

Vou descendo mais e mais no vazio, num poço de lama pegajosa e escura, que salta esfomeada sobre as parcas sobras de luz que restaram em mim.

E o medo segue, passeando inexorável, rastejando-se pelo breu de minh’alma agonizante, até o instante em que não sinto mais nada.

Ouço ao longe o meu próprio suspiro fatídico. Encerro minhas dores, meus amores, meus pedidos de socorro não ouvidos.

Ainda há tempo de segurar minha mão! Alguém, por favor, ajudai-me!!!

Mas tudo o que ouço é o silêncio. Ninguém aparece. Ninguém me salva. Por quê? Por que não me resgataram?

O cerco agora se fecha. O ar se esgota. E em meu rosto desce a última lágrima.

* * *

Exausta, desfaleço. Quando retorno, vejo-me estendida ao chão. Sento-me e recupero o fôlego. O espírito se foi.

Noto as folhas inteiramente preenchidas de palavras vertiginosamente discorridas.

E embaixo do texto, a assinatura do espírito — Florbela Espanca.

Demoro para compreender o que houve. Custo a crer quem de fato esteve em mim e desafogou suas dores.

Passo minhas mãos sobre aquele desabafo e choro convulsivamente.

A mesa agora está morna e plácida, como eu.



*  *  *

Amar! [...]
E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar

Florbela Espanca [1894-1930]



17 comentários:

  1. Espíritos que se aproximam sejam de luz ou não,deixando suas mensagens através daqueles que vieram com essa missão.
    E eu acredito,pois sigo a Doutrina Espirita de Allan Kardec.
    Gostei muito de ler Rosa.
    Bjs-Carmen Lúcia.

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  2. Quando espíritos deixam as suas mensagens pedindo socorro, creio que devemos orar, orar muito para poder ajudar este pobre espírito sofredor.
    Que Deus lhe abençoe.

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  3. Não sou de pregar religião, mas acho que se Deus existe e vem por aqui, é através da nossa fé. A sensação que sinto quando faço uma oração não tem definição. Não acredito que existam espíritos.

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  4. Intenso... inclusive gosto da intensidade da Flobela Espanca ;-)
    Soou real, sincero...

    Beijos.

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  5. Não tenho medo de nada pois tenho premunição do que vai acontecer, mas não posso fazer nada. Acontece e pronto.Adorei a postagem, poetisa.
    Beijos
    Minicontista2

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  6. Eu sempre creio ao ler algo bonito e bem construído, de que Deus veio colocou sua mão sobre a do poeta e assim esta sua construção em dois tempos ficou maravilhosa, e fecha com uma Florbela.
    Só aplausos amiga.
    Bjs de paz.no bom fim de semana e que outras mãos toquem seu ombro.

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  7. Muito bem imaginado e muito bem escrito.
    Os meus parabéns.
    Bfds

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  8. Nossa... Tristemente belo esse grito de socorro, essa angústia que parecia infinita, mas finita foi. Ao ler fiquei pensando na intensidade das dores que não são físicas, mas chegam a um ponto de insuportáveis. E assim era Florbela, deixou muita dor seus poemas; como era complexa, sofrida... Só aplausos a você Rosa!

    Um beijo, querida.

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  9. Uma mensagem muito forte, extremamente bem escrita!
    Bj

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  10. Intenso e expressivo conto com um toque de tristeza, apavorante dentro de uma linguagem poética. Parabéns e um belo fim de semana.

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  11. Oi, Rosa, que contundente pedido de socorro! Se foi construção literária é soberba e ousada. Se foi realizada à luz do real é também impressionante...De qualquer forma ma faz lembrar a citação atribuída a Shakespeare : há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. Parabéns pela qualidade do texto e também pela ousadia.
    Um abraço

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  12. Amigos queridos,

    aos que ficaram em dúvida sobre o processo criativo desse conto, quero dizer que é puramente ficcional e foi escrito em primeira pessoa e num estilo psicografia, com toques poéticos, para ficar o mais realista possível.

    A história de vida de Florbela Espanca me impressiona tanto quanto a grandeza de suas obras. Ela gritava suas dores em seus poemas. Tentou três vezes dar cabo de sua vida.

    Imaginei como teria sido os seus momentos finais e tentei expressar em palavras toda a dor e desespero e aflição e solidão e falta de esperança... sentida por quem desiste de viver.

    Obrigada pelas leituras e comentários.

    *beijos e abraços*

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  13. Este texto é um excelente conto.
    Não só pela narrativa, mas também porque contém uma pequena história aproveitada de uma forma inteligente.
    Rosa, tem um bom domingo.
    Beijo.

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  14. Olá,Rosa...boa noite...muitas pessoas se sentem como o personagem : querem pôr um fim ao seu sofrimento e tem uma certa dificuldade em organizar as ideias de maneira efetiva e sentindo-se estranhamente perturbado, fazem uso do poder catártico da escrita.Conseguem tão bem transcrever o que sentem, que custam a crer quem de fato esteve em si e desafogou suas dores em forma de escrita , que parece que ter sido psicografado sob a inspiração de um espírito ... por outro lado, algumas delas até tentam o suicídio- Florbela é um exemplo- e nesse caso, não querem pôr um fim à própria vida; na verdade, o que precisam é de uma razão para viver...e escrever é uma bela "razão" para viver>se sentir vivo! Belo conto!
    Bela semana,belos dias,abraços!

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  15. Oi, Rosa!
    Uauu!! Fiquei toda arrepiada com esse texto.
    Com certeza é um excelente texto, minha amiga.
    Cada vez me apaixono mais por sua escrita.
    Abrçs

    ✿Blog: Autora Marcia Pimentel✿ ✿Instagram✿ ✿Twitter✿

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  16. Um texto ficcional, que terá captado muito bem a atormentada alma de Florbela!...
    Belíssimo trabalho, que nos prende às palavras desde o início!
    Parabéns, Rosa! Adorei, esta surpreendente e notável inspiração!
    Beijinhos! Continuação de uma boa semana!
    Ana

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  17. Um narrativa interessante em que seu eu-lírico consegue se desmontar, surgindo, assim, duas personagens. Uma, k já se acostumou a "servir" os outros, embora com suas alegrias e tristezas, e uma outra, mto sofrida, mto infeliz, k é apresentada aqui como Florbela Espanca, que teve um vida mto turbulenta, já desde seu nascimento. Todavia, em minha opinião, nós podemos alterar o percurso dos acontecimentos, que de nós dependem, e ela nada fez para isso.

    Beijos e bom fim de semana, Rosa!

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