
Disposto
a se tornar um escritor dos bons, matriculou-se numa oficina literária, cuja
promessa era ensinar técnicas para escrever contos de terror e suspense. Teria
uma duração de três meses e seria ministrada por um consagrado autor
nacional.
O
estacionamento ficava no subsolo do prédio. Henrique olhou em volta e escolheu
uma vaga. Em seguida, caminhou até o elevador. Em instantes viu-se no décimo
segundo andar. Percorreu os olhos de um lado a outro e avistou a sala. Entrou e
misturou-se entre os participantes que já ocupavam alguns lugares. Acomodou-se
bem no meio termo. Nem tão perto. Nem tão distante. Esperou, inquieto. Dentro
de sua cabeça, palavras dançavam. Mas tão logo o professor apareceu, retirou os
fones. A música cessou. Era seu primeiro dia de curso. Tratou de prestar
atenção.
As
primeiras aulas foram aborrecidas. Ao invés das técnicas que ele tanto
almejava, o professor ressaltava o tempo todo a importância de um texto bem
escrito. "Sou sádico demais para tratar bem o português" - pensou,
rindo do próprio trocadilho.
Henrique
herdara da mãe os olhos azuis, a pele sardenta e uma ansiedade que o deixava
afogueado em certas situações. Do pai, herdara o nariz batatudo e um afeiçoado
gosto pelos livros e histórias assombrosas.
Aprendeu
muitas coisas nos dois primeiros meses. Teria aprendido mais, não fosse sua
dificuldade para se concentrar. Escutava algo e logo se transportava para outra
parte, de onde nem sempre conseguia retornar facilmente. A sala se transformava
e um novo evento acontecia. Ele abria o caderno e escrevia todas as coisas que
via. Então, os sons o traziam de volta.
— Pessoal, em nosso último mês de curso,
faremos um exercício para colocarem em prática tudo o que aprendemos. O
desafio será elaborarem um miniconto por semana, cuja temática será:
Visceral...
Henrique escutou a palavra visceral e se
empolgou. Várias ideias começaram a se formar em sua mente, empilhando-se umas
nas outras, enlouquecidas.
— Todas as sextas-feiras vocês me entregarão o
texto em aula. Darei uma passada de olhos e emitirei uma opinião. Entendido?
Alguma dúvida? E no final do curso eu divulgarei uma lista com os melhores
minicontos, que farão parte de uma antologia aqui da oficina. Gostaram? Ah, os
sortudos também ficarão em destaque no site, ganharão bolsas de estudo para
novos cursos e a última obra de Stephen King!
A
turma incendiou com as novidades. Também, pudera. Um estímulo e tanto. Henrique
achou o máximo. Só estava ali para aprender. Nem sabia que teria prêmios.
"Caramba! Eu quero o último livro do mestre!"
Durante
a semana, esmerou-se para criar o miniconto mais visceral de todos os tempos.
Dentro das suas limitações de aprendiz, naturalmente.
* * *
Na
primeira sexta-feira do último mês de curso, Henrique apresentou seu texto.
Sexo selvagem
O
cossaco de Kuban me perseguiu por toda a minha temporada na Sibéria. Parecia um
lobo das estepes, esfomeado, correndo atrás de sua presa. Uivava e salivava,
enquanto eu puxava a pele de morsa bem junto aos meus volumosos seios e resistia
bravamente. E tudo porque dormi com ele na mesma tenda, usando apenas minha
camisolinha branca rendada e nada mais. Lutei o quanto pude. E ao sentir seu
enorme vigor siberiano pressionando meu corpo, gritei, arranhei, mordi, em
desespero. Barbaramente ele me possuiu. Arranquei sua pequena adaga e
cravei-lhe nas costas. Uma, duas, três, quatro vezes... Perdi a conta. Quanto
mais ele me machucava, mais eu o cortava. Custei para afastar aquele corpo
gigantesco de cima de mim. Fugi. Deixei ele estendido na tenda, entre sangues e
carnes abertas. Maldita hora em que resolvi provocar o cossaco! FIM
— Nada mal. Um formato ousado. Porém, fugiu um
pouco ao que foi proposto.
Depois
de ouvir isso do professor, Henrique saiu da sala bastante frustrado, sem
entender nada, pois tinha certeza que seu texto era visceral. Mas tudo bem,
pensou, iria dar seu máximo ao criar o próximo miniconto.
* * *
Na
segunda sexta-feira, Henrique entregou seu outro miniconto. Tenso, ficou
estudando as reações do professor durante a leitura.
O
carniceiro fugitivo
Stanley
saltou da cama, pegou suas roupas e pulou a janela numa velocidade
inacreditável. Marcinha tinha jurado que o marido iria ficar fora por uns dias.
E justo na melhor parte o cara aparece! Em disparada, ainda pelado, atravessou
o pátio e passou feito um raio pelo corredor lateral. Parou num canto e
vestiu-se rápido, torcendo para o sujeito não vir atrás dele. Entrou no carro
ainda com a camisa aberta. Recuperou o fôlego, pisou fundo e vazou dali. Bem
mais adiante, reduziu a marcha e encostou. A respiração voltava ao normal quando um cara surgiu do banco de trás e o atacou com uma faca. Minha nossa! Um assalto! Era só o que faltava! Na pressa para se encontrar com
Marcinha ele esquecera de trancar o carro. "Calma, velho, calma! Entrega o
carro, dinheiro, celular, tudo, sem reagir" - pensou Stanley. Tirou então
a chave da ignição e virou-se para entregá-la, julgando tratar-se de um roubo.
Stanley não sabia que o homem em seu carro era um fugitivo perigoso, condenado
por vários homicídios, praticados com requintes de crueldade. O sujeito não
queria seu veículo, queria era fatiá-lo, deixando sua marca registrada. Ao esticar
a mão com a chave, Stanley levou a primeira facada. O golpe inesperado o fez
gritar de dor. Tentou abrir a porta para fugir e recebeu outra estocada.
Buzinou, tentando chamar a atenção de alguém. É, a situação não cheirava nada
bem. Furioso, o assassino moveu o braço, deu uma chave de pescoço em Stanley e
enfiou a lâmina na barriga com uma força incomum. Sem retirar a faca, abriu um
corte profundo, de ponta a ponta. Depois sim, tirou, lambendo o sangue da
lâmina. Inclinou-se e esfaqueou novamente, desta vez em diagonal, desenhando
uma cruz. Stanley, a essa altura, nem se mexia, quase morto, apavorado, em
choque, ferido, atônito, cagado de medo. O assassino, por conta daquela
buzinada e temendo ser pego, deu-se por satisfeito. Desceu do carro e
desapareceu nos becos escuros. Entre a vida e a morte, Stanley moveu os dedos
em câmera lenta e apertou a buzina. Ficou segurando as entranhas que ameaçavam
sair para fora. Aguardou por socorro. E que não demorasse muito, porque suas
mãos já estavam morrendo, enterradas em suas tripas.
FIM
— Texto dinâmico, Henrique. Mas ainda não está de
acordo com o tema.
Henrique
ficou incomodado com aquele comentário. Chegou em casa e conferiu no
dicionário. Visceral: profundo, entranhado, relativo a vísceras. Como assim não
estava de acordo com o tema? Bom, talvez ele estivesse dando uma conotação
errada. Ou isso, ou o professor estava tirando uma onda com a cara dele.
* * *
Na
terceira sexta-feira, muito nervoso, Henrique alcançou a folha ao professor.
Cruzou os braços. Aguardou.
Nem
todo poço tem fundo
Por
insistência da mãe, ele foi na festa de aniversário do tio Manolo. Preferia ter
ficado no chat de papo com os amigos. Mas um garoto sabe desde pequeno
que não se deve contrariar uma mulher. A menos que... Bem, a menos que seja
realmente necessário. Chegando lá, conheceu Pietra. E através dela, Yuri, que o
apresentou ao mundo das drogas. Começou pelas mais leves. Evoluiu carreiras de
pó e mergulhou no crack. Daí, desceu até o fundo. E continuou descendo. Não
havia dinheiro suficiente para suprir seu vício. Roubava, na maior cara de pau.
Passou a fazer programas, por uns trocados. Abandonou os amigos. Os pais bem
que tentaram ajudá-lo. Em vão. Era inútil argumentar com um viciado. Ele não
era mais ele. Tornara-se um farrapo, usado por qualquer um. Dois anos naquela
vida. Então, na véspera de Natal, cansado de apanhar nas ruas e sentindo falta
de uma cama limpa, voltou para casa. Tocou a campainha. De braços abertos e
chorando muito, a mãe o recebeu. Emocionado, chorou com ela. Pediu perdão.
Perguntou pelo pai. "Seu pai? Você o matou de desgosto, depois da última
vez que esteve aqui." FIM
— Intenso. Apesar de ainda não se enquadrar, seu
miniconto não ficou ruim.
Ao
escutar isso, Henrique não se aguentou mais e perguntou ao professor onde ele estava
errando, afinal.
— Caramba, professor, pode me dizer por que meus
textos não estão de acordo com o tema?
— Henrique, o tema é "Visceral, sem ser
cruel". Compreendeu?
— Sem ser cruel? Puxa vida! Acho que não escutei
direito no dia. Desculpe.
Se
ele não fosse tão afobado, teria ouvido a frase completa. Que mancada! Pagara o
maior mico. Se tivesse uma britadeira por perto ele teria feito um buraco na
cerâmica da sala e se enterrado ali mesmo. Vermelho de vergonha, Henrique foi
embora.
* * *
Todo
sem jeito, na semana seguinte Henrique colocou nas mãos do professor o seu último
miniconto.
Aberração
A
protuberância aumentava a cada dia. Virava-se de um lado e de outro e o
incômodo salientava-se, obrigando o pobre sujeito a mexer-se até encontrar uma
posição confortável. Aquela bostela pustulenta precisava ser extirpada. Não
suportava mais. Assim fez. Na sala de cirurgia, o bisturi rasga a pele do homem
'verruguento'... E o leite jorra! FIM
— Interessante, Henrique.
— Obrigado, professor - disse, meio em dúvida se
havia ganho um elogio.
— Confiram a lista que será divulgada dentro de
uma semana, com a relação de todos os participantes. É isso, meus caros
escritores. Parabéns a todos. E até uma próxima oportunidade. Sucesso! — despediu-se o
professor.
Henrique
foi embora e passou os dias seguintes na maior aflição.
Uma
semana depois ele praticamente voou até o mural para ver o resultado.
Lá
estava seu nome... em 14º lugar!
Chateado,
afastou-se dali.
Desceu ao estacionamento, entrou no carro e saiu cantando pneu.
Desceu ao estacionamento, entrou no carro e saiu cantando pneu.
Nem
viu que embaixo da relação dos nomes dos autores estava escrito que os
melhores 15 minicontos haviam sido selecionados.

rzrzzz, depois de tanto trabalho, de tantos equívocos... se apressou e comeu cru! Mas escrever é esforço puro: escreve, volta, enxuga o texto, troca aqui, deleta lá... E passamos assim bom tempo. Mas essa ladainha me dá prazer, até chegar o ponto que se quer. O martírio é a ideia! Mas o infeliz, Rosa, teve falta de atenção por duas vezes: primeiro o julguei 'Jack, o estripador', me arrepiei; depois teve uma crise de desatenção.
ResponderExcluirMuito boa sua ideia e as macabras histórias, além de divertido, delineou alguns cursos de contos e crônicas...o que é interessante.
Beijo, amiga!
Pena que ele tivesse sido tão precipitado.
ResponderExcluirBeijinhos
Olá Rosa
ResponderExcluirNa ânsia de aprender o pobre rapaz tropeçou na falta de atenção pois cada ensinamento o levava a uma divagação. E no auge da impaciência não teve equilíbrio suficiente para analisar a lista e perceber que o seu empenho fora reconhecido
É o que acontece quando se age com precipitação
Um conto excepcional Rosa. Parabéns
Beijos
Oi Rosa, boa noite!
ResponderExcluirCoitado, é por isso que não pode ser desesperar...
Pior que pode acontecer com qualquer um!
Que conto bom!
Beijos,
Mariangela
A autora do conto, e do blogue, é que tem uma imaginação prodigiosa!!
ResponderExcluirRosa que bela construção de vários contos para nosso deleite.
ResponderExcluirAparelhou o Henrique e criou belos contos com de impacto.
A mensagem perfeita sobre a precipitação.
Gostei da arte.
Abraços.
Oi Rosa
ResponderExcluirQue conto lindo. Tá parecendo minhas conversas minhas com a do meu filho.Quando começo a falar, vem ele me interromper, aí grito: ô saco eu ainda não terminei... Termina mãe, agora já esqueci.kkk
"Saiu correndo ao ver-se em décimo quarto lugar. Quase atropelou uma mulher de camisolinha branca e nada mais... quando freou o carro para evitar atropela-la, ouviu um som de algo batendo em sua poltrona e sentiu a lâmina de um fugitivo carniceiro que atravessou o banco do carro e cravou-se em suas costas... ... chegou a pensar: "bem quando decidi voltar pra casa e ver se meu pai ainda está vivo"... mas sabia que jamais chegaria: olhou em sua barriga, por onde saía a ponta da lâmina da faca e viu formar-se uma pústula.....
ResponderExcluirMorreu. foi para o "outro lado". De lá, viu o professor receber prêmios com o livro que escreveu contando a história de Henrique!
Ah, escritora.... como é bom ler teus textos!
Olá,Rosa, muitos locais -no caso, oficina literária- prometem e/ou têm como objetivo ensinar as pessoas a melhor maneira técnica de se escrever sobre determinado tema , estilo ,gênero etc e tal . .. entretanto, as melhores dicas e lições, por vezes, não são ministradas (somente) nesses locais, tanto que lições aprendemos de diversas outras maneiras, ... foi o caso do Henrique,cuja lição não veio através de um autor nacional consagrado e sim de si próprio: não ser afobado e nem impaciente , ainda mais quando sua escrita tem que passar pelo crivo de outras pessoas...
ResponderExcluirObrigado pelo carinho,feliz finde,belos dias,beijos!
Excelente querida Rosa.
ResponderExcluirAdorei ler você querida amiga, beijinhos e grata por sua doce visita.
O sucesso da narrativa está dentro do autor, na sua criatividade e na verdade no seu prazer...técnicas existem e aprimoram mas não são nada sem e inventividade do criador que sabe dar vida ao seu personagem assim como você fez criando contos dentro do conto.
ResponderExcluirUma delícia de conteúdo!
Um abraço