quinta-feira, 7 de julho de 2016

Sumiu e ninguém viu. Ou viu?


Eugênio despertou num certo domingo de outono, sentindo-se esquisito.

Confuso e sem entender o súbito desconforto, olhou-se no espelho. Fixou os olhos em seu rosto e sentiu um leve tremor. Um sentimento tolo de irreconhecimento o dominou. Despiu-se. Conferiu-se por inteiro, perdendo um tempo melhor em seus olhos estreitos e negros. Do fundo deles, Eugênio viu refletido um outro Eugênio. De início, ficou tenso. Depois, sentiu medo. Por fim, decidiu se rever, num esforço ingênuo e pueril de romper os indícios misteriosos e se conhecer melhor.

Suspirou e estudou-se bem de perto. Feições e trejeitos, ok! Queixo proeminente, ok! Poucos pelos no peito, ok! Excesso de peso no tronco, ok! Um membro digno de respeito, ok!  

Suspirou.

Seguiu o intento. Porém, mudou o foco e inspecionou-se por dentro.

Jovem, com sonhos envelhecidos. Introvertido e com surtos eufóricos. Curte sons de outros tempos, filmes épicos, suéter preto, mel com presunto e um bom vinho do Porto. Consegue ser dócil e ríspido em momentos idênticos. Inteligente e preguiçoso. Tímido e decidido. Ciumento e indiferente. Cínico e sisudo. Ri em momentos impróprios. Emudece por longos períodos. Sente medo de roedores e um nojo incompreensível de mosquitos. Tem horror de compromissos longos. Foge como um doido dos riscos iminentes e quer ser compreendido por isso. Seu mundo interior é um imenso deserto com flores de perfumes rústicos. Sente-se forte como um touro em certos momentos e em outros sem vigor nenhum. Em seus sonhos ele se vê engolido de um século longínquo e inserido neste ritmo enlouquecido dos tempos de hoje. Tem vezes que seu desejo é sumir, fugir, esconder-se de todos. Em outros, quer ter vínculos ternos, filhos, inclusive. Bem, tudo é possível. Como dizem, o céu é o limite. 

Preocupou-se depois de ver tudo isso nele. Julgou-se dúbio, indefinido, com os pés entre dois universos. Porém, inocentou-se no minuto seguinte, porque ninguém consegue ser cem por cento coerente o tempo todo, pensou.  

Enfim, Eugênio quer o que todo mundo quer: seguir em frente, ser feliz e ter um futuro melhor. 

Soltou outro suspiro. 

Viver é simples. Oh, porém, como é difícil!

De repente, ele entendeu o que houve. Ele mudou! Ele se renovou!

Depois de um longo tempo se vendo, percebeu que ele é hoje o mesmo Eugênio de ontem, mesmo sendo diferente. Nem melhor, nem pior. Só diferente. E reconhecer isso nele provocou um efeito que mudou o seu rumo.     

Vestiu-se.

E como se tivesse descoberto um tesouro precioso, sorriu e disse:

— Viver é isso... É sentir... É ver... É ver-se... Ver-se por inteiro!  

Depois, deixou o cômodo e levou o novo Eugênio com ele. 


 Você descobriu quem foi que sumiu? 
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Devem ter percebido, contudo, eu revelo: 

É que eu escrevi este texto inteiro sem o "a". 


* * *



27 comentários:

  1. Que3 fabuloso te ler! Muito bem e ainda, nem tinha me dado conta do sumiço do A, tão ligada ao enredo! Adorei! beijos,chica

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  2. Adorei ler Rosa,mas não sei como conseguiu escrever um texto sem a vogal "a".
    Isso é só para pessoas experientes como você que é uma grande escritora.
    Bjs,obrigada pela visita e um ótimo final de semana.
    Carmen Lúcia.

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  3. O texto é maravilhoso! Expressa sentimentos reais! Uma dualidade de sentimentos que ocorre mesmo!!! Só que nunca poderia imaginar que seu texto não tinha o "a "!!!!! Rsss... Incrível!!! Parabéns!!! Eu não conseguiria!!!! Bjs! Mary Chef.

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  4. Oi, Rosa, um texto tão interessante no conteúdo introspectivo que viajei o tempo e não percebi a falta do 'a'. O conteúdo quando bom sempre se sobrepõe à forma e serve a observação para todos os contextos. Genial!;
    Um abraço

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  5. Tão interessante! Adorei o novo Eugénio que se confere, conclui diferenças e evolução, seguindo em frente abraçado ao "velho"
    Bom fim de semana.

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  6. Oi Rosa,
    Eu já fiz com uma turma no colégio, quase matei todos os "piolhos" da cabeça
    Adorei
    Beijos
    Lua Singular

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  7. kkkkk gente, em nenhum momento eu percebi que o "a" havia sumido. Espetacular. Beijaoo

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  8. Excelente seu texto!
    Sim,ninguém consegue ser coerente o tempo todo,vc conseguiu ser inteligente o tempo todo.
    Bjsss

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  9. Olá amigos, que bom que gostaram do texto. Vocês são uns amores. =)

    Muito obrigada pelos comentários, eles são uma recompensa pra mim.

    Este estilo de escrita chama-se lipograma, onde uma letra do alfabeto é excluída propositalmente do texto. É um exercício criativo e divertido.

    Continuem lendo e comentando. Ficarei muito feliz. rs

    Beijos e abraços/Bom final de semana!

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  10. ♩♫╮
    Você é fantástica... um texto desse, sem o "a"?!
    Impressionante!!!

    Bom fim de semana!
    Beijinhos.
    °.♪♫╮

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  11. Das elucubrações é que vamos devastando nossos porões.
    Cadinho RoCo

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  12. Adoreiiiiii!!!
    Fiquei tão envolvida com o conto do Eugênio, que não percebi a falta do "a".
    Ao descobrir, ao ler no final, voltei ao texto e li novamente e fiquei ainda mais fascinada pelo texto.
    Parabéns.
    Abrçs

    Leia: Sorteio do Livro Marcados Pela Lembrança

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  13. Boa noite, amiga,Rosa. Eu fiquei tão presa ao conto que sequer percebi que o escreveu sem a letra a.
    Que bom que Eugênio olhou para si e sua incompletude.
    Todos mudamos a todo instante não só fisicamente. As emoções seguem conosco mostrando cenários novos.
    Ao despir-se, encontrou-se.
    Que assim seja conosco.
    Aplausos!
    Amei.
    Tudo de bom para você.
    Beijos na alma.

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  14. Oieee amiga poetisa..ainda com seu lindo cantinho...muito legal seu conto..tb ñ reparei que ñ tinha a letra A..show amiguxa..beijus bfs

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  15. OI ROSA!
    QUE SHOW! ACHEI TEU TEXTO "TRI LEGAL" ALÉM DE ÓTIMO AINDA COM A SUPRESSÃO DA LETRA "A" E EU, BUSCANDO NO PRÓPRIO CONTEÚDO QUEM HAVIA SUMIDO RSRSRS.
    PARABÉNS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  16. Oi Rosa!
    Nossa, quanta inteligência!
    Não sei como conseguiu escrever esse maravilhoso texto, sem o "a".
    Fantástico!, amei.
    Obrigada pelo carinho. Ainda estou devagar, me poupando para o trabalho!
    Beijos,
    Mariangela

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  17. simplesmente impressionante....! Como pode escrever sem o principal símbolo dos nossos dizeres? Impossível, até mesmo, um suspiro sem ele...
    ... Sumiu. Onde foi?

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  18. Pois me passei nessa ausência da letra “a” no teu conto. Um tarefa nada fácil. Nunca me acorrer fazer essa experiência, quem sabe um dia...
    Também gostei muito do teu conto, com as descobertas de Eugênio sobre os valores e as dificuldades da vida. Muito bom.
    Abraço, Rosa.

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  19. Oi, Rosa!!

    Nossa o A sumiu e nem fez falta!! Céus!!rsrs
    Fiquei tão envolvida com as reflexões do Eugênio que nem me dei conta.
    Sempre excelente, Rosa!
    Beijos e meu carinho!

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  20. Nossa!... Eu não tinha dado conta da falta da letra... e agora que dei... como é possível um texto tão interessante e extraordinário... sem uma das letras primordiais?...
    Notável... será dizer muito pouco... mas não me ocorre mais nada!...
    Parabéns pelo talento e inspiração!
    Beijinhos! Boa semana!
    Ana

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  21. Passando apenas para deixar um beijinho, já que vou dar uma paradinha no blog, por alguns dias, para férias...
    Desejando-lhe a continuação de uma boa semana, e um excelente mês de Agosto...
    Ana

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  22. Olá, Rosa, bom dia...
    verdade, se não tivesse respondido não teria percebido o lipograma , a falta do "a"...
    grande expressão de sentimentos reais, que muitos passam por isso,pois, não é fácil reconhecer o que éramos,mesmo que tudo pareça ok!
    Não é fácil , olharmos um reflexo consumido pelo tempo implacável e inexorável. Não é fácil, nos percebemos!
    Mas, tudo se torna fácil, quando percebemos que somos o mesmo de ontem, mesmo sendo diferente.
    E com olhos de querer, cuidar , se ver por inteiro , amar a si mesmo e viver!
    (obrigado pelos parabéns, continuo em pausa,volto em setembro, pelo carinho,belos dias, beijos! )

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  23. Muito boa a reflexão no redescobrimento do ser.
    O mergulho na própria existência e se descobrir lindo e igual.
    Bela criatividade neste exercício de sumir com a letra A.

    Bela construção amiga.
    Abraços

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  24. Oi Rosa,
    adoro sus contos
    São lindos
    Eu já fiz também sem uma letra, mas foi do blog que excluí.
    Beijos
    Minicontista2

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  25. Uma Obra de Arte, com muita Arte, atenção e imaginação.
    Parabéns pelo "feito".


    Beijo
    SOL

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  26. Parabéns Rosa! Interessantíssimo!
    Eu uso muito a letra A não sei se conseguiria essa tua proeza. Palmas!👏👏👏

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