quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Complexo


Gumercindo do Rego Grande odiava o próprio nome. Todos o conheciam pelo apelido, Guto. Chamá-lo pelo nome completo seria pedir briga na certa. Na escola, fora um problema quase diário. E quanto mais ele se irritava com as zombarias dos colegas, mais eles o caçoavam.

Com o sobrenome Rego, a mãe jamais deveria ter se casado com Almir Pereira Grande. E por que não pensaram no filho, quando foram registrá-lo? Cruelmente selaram seu destino, em cirandas de tormentos intermináveis. 

Bem que tentou adotar o codinome Guto Grande, informalmente, mas também não foi muito feliz. Pediam sua identidade e o desmascaravam, saboreando o momento com satisfação. As risadinhas infalíveis surgiam nos cantos das bocas.

Se ele fosse um cínico, tudo seria tão simples. Bastaria rir dele mesmo, da situação, da cilada em que se metera. Mas Guto era a seriedade esculpida em bronze. Não achava graça alguma.

Passaram-se os anos. Guto seguiu levando a vida, como a vida permitia. Ora esbravejando, ora tentando, num esforço hercúleo, parecer indiferente, diante dos inevitáveis gracejos.

Um dia, sem saber bem porquê, comprou um bilhete da loteria. Para seu  espanto, acertou em cheio. Ficou eufórico. Ainda mais quando soube tratar-se de uma fortuna considerável.

“Estou rico! Posso mudar de país, me tornar anônimo e ser quem eu quiser! Posso tudo!” – comemorou, aos gritos.

No dia seguinte, ansioso em pegar a bolada e dar um novo rumo para sua vida, apresentou-se para identificar-se e receber o prêmio. Depois das formalidades iniciais, o gerente do banco pediu-lhe os documentos, pois tinha de verificar a autenticidade e preencher toda a papelada. "Uma burocracia indispensável. O senhor entende, não é senhor... Gumercindo do Rego Grande" – disse-lhe, com um risinho incontido.

O sangue ferveu no corpo de Guto e subiu-lhe à cabeça todo ao mesmo tempo, borbulhando, deixando seu rosto num braseiro. Ficou por instantes paralisado na cadeira, olhando aquele homem, internamente rindo dele. Olhou para o abridor de cartas, em cima da mesa, bem ao alcance de sua mão. Esticou o braço. Sim, faria um bom estrago se cravasse o objeto pontiagudo na garganta daquele estupor.

Ao invés disso, levantou-se. Puxou o bilhete premiado das mãos do desgraçado. Pegou os documentos, colocou tudo no bolso e saiu do banco caminhando até a saída, com passos firmes. 

Chegando em casa, queimou aquele papel maldito, que o fizera passar por mais uma humilhação. Com certeza o assunto ficaria dentro dele por vários dias, até ser substituído por alguma outra situação constrangedora. 

Guto, no entanto, desconhecia o fato de que o gerente do banco havia passado para frente a informação do ocorrido. Em poucas horas, a notícia ganhou pernas, espalhando-se pela cidade. Tuitaram o episódio e transformaram Guto no assunto mais falado do momento.

Sua fama correu velozmente por todos os cantos do país. Emissoras de televisão tentavam entrevistá-lo, para entenderem tamanha sandice. O calvário estava prestes a se tornar ainda maior do que já era. Ele agora teria que conviver com mais um dilema: o nome que odiava desde pequeno e o fato de ter sido milionário por apenas alguns minutos. Não haveria lugar no mundo distante o bastante para que pudesse viver em paz.

O telefone não parava de tocar. Jornalistas acampavam em sua porta, insistindo por uma coletiva. Ainda bem que os pais estavam viajando.

Sozinho, acuado, desesperado, cerrou cortinas, apagou luzes, encolheu-se num canto, esperando cansarem de esperar e irem embora.

No meio da noite, aproveitando-se de uma trégua na vigilância da imprensa e curiosos, entrou no carro, pegou a estrada e fugiu do centro da cidade.

Com pouco dinheiro, refugiou-se num casebre antigo, onde costumava ir quando queria se esconder do povaréu. Os pais retornariam em duas semanas, até lá a poeira já teria baixado e ele poderia voltar para sua vidinha de sempre. Pelo menos, torcia por isso.

O primeiro dia foi tranquilo. A velha casa ficava afastada de outras e ele aparentemente estava a salvo. Levara alguns mantimentos. O tanque do carro estava cheio. Ficaria bem. Não havia o que temer.

No segundo dia, Guto escutou passos próximos à janela onde dormia. Pensando tratar-se de algum morador das redondezas, abriu a porta sem medo. Deparou-se com Anita, a jornalista que tentara entrevistá-lo dias antes. A surpresa foi tamanha, que sem pensar duas vezes empurrou-a para fechar a porta e impedi-la de entrar. Os pés de Anita, que haviam subido três degraus para espiar pela fechadura, se desencontraram e perderam o equilíbrio. Ao cair, Anita bateu a cabeça nas pedras pontudas que cercavam um canteirinho tomado pelo mato.  

Guto entrou em pânico ao ver o corpo de Anita estirado em frente ao casebre. Abaixou-se para constatar se ela ainda respirava, quando ouviu gritos do outro lado da rua. Era o fotógrafo, parceiro da jornalista. Percebendo a gravidade da situação, Guto disparou em direção ao seu carro e desapareceu dali.

O fotógrafo chamou a polícia. Apontou Guto como o responsável pela morte de Anita. Deram início a uma caçada para prender o assassino. A morte da jornalista causou comoção nacional. Guto tornou-se um dos foragidos mais procurados. Cartazes foram espalhados por todos os lugares, com sua foto e seu nome completo em letras garrafais.

Ninguém achava mais graça de nada.

Em hipótese alguma ele se entregaria. Na prisão, além de humilhado, ele seria massacrado. Com um nome como o dele, o pior ainda estaria por vir. Puta que pariu - repetia incontáveis vezes, enquanto se embrenhava pelas ruas da cidadezinha em busca de um buraco para se esconder. A rodovia deveria estar bloqueada. Teria que roubar um carro. O que faria? Seria perigoso sair da cidade. Seria perigoso sair para qualquer lugar.

Foi então que lembrou de alguém.

Abandonou o veículo. Colocou seu boné e esgueirando-se pelos becos, pulou o pequeno muro de uma bela casa cor de areia. Na mosca! Lá estava o desgraçado. Olhou em volta. Bem em cima do balcão da pia avistou o que ele precisava. Pegou. E seguiu em busca de seu alvo, sem fazer barulho.

Sentado sozinho na sala, assistindo o noticiário, o homem nem percebeu o vulto que se aproximava com uma faca na mão.

O gerente do banco tinha acabado com a vida de Guto. Agora, chegara a vez dele fazer o mesmo.




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22 comentários:

  1. Que historia emocionante amiga Rosa.
    Por complexo de um nome,Guto acabou sendo
    um assassino.
    bjs amiga e obrigada pela visita
    Carmen Lúcia-mamymilu

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  2. Oi Rosa
    Parabéns pelo seu lindo e criativo conto
    Eu li em voz alta pro meu marido ouvir, riu bastante do nome.
    Eu tenho um nome chato também, aqui na minha cidade todos o sabem pronunciar. Mas chegou um padre novo o qual fez meu segundo casamento e falou bem alto: Dórli....eu peguei o microfone e disse: meu nome não é Dórli, é Dorlí.Todos riram na igreja, até o padre e a cerimônia continuou. Pode?
    Obrigada pela visita
    Lua Singular

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  3. O próprio nome odiava
    Porque seria então
    Com certeza dele não gostava
    Será que tinha razão?

    Quando o complexo
    é mais forte
    De inferioridade sem nexo
    Será coisa de má sorte!

    Boa noite para você,
    amiga Rosa Mattos, um beijo
    Eduardo.

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  4. Ótimo, trágico, porém, sempre com uma pitada de humor, sua marca registrada neh!! adorei amiga!! parabéns!!

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  5. Puxa, que conto! Lindo, rico em detalhes e trazendo em si uma mensagem: Os nomes a ser dados pelos pais, devem ser pensador, pois são pra sempre carregados. Muito legal e um final trágico,mas ... beijos,chica

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  6. Olá!Bom dia, Rosa!
    Parabéns pelo belo conto, gosto de sua forma de escrever e com uma reflexão muito profunda...
    .O íntimo do ser humano é povoado de lutas pelo poder, sentimentos e competições, e procura sempre se defender de um meio agressivo e desconhecido. Estes processos contribuem para o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Como geralmente, nestes momentos que está sendo humilhado, por baixo , não há ninguém ao lado para mostrar esta face afirmativa da realidade, é quase inevitável a queda no Complexo de Inferioridade....infelizmente, o que aconteceu com Guto...alguns, quando chegam a esse momento, autodiagnosticam e buscam fugir. Fisicamente. Mentalmente.E a superação desse processo fica interditado , pronto, para ações explosivas e intempestivas..uma pena!
    ..me lembrei de uma entrevista da atriz Suzy Rego que ao conhecer e ficar com o ator Paulo César Grande afirmava, em tom de brincadeira, que jamais iriam namorar. No entanto, ficaram juntos por cinco anos e se casassem cada um ficaria com seu próprio sobrenome por razões óbvias!Ela dizia que ouvia muitas piadas , mas fazia , também. E é assim,que deveríamos ser...levar tudo na esportiva,só o justo e o necessário....
    puxa, escrevi demais, sorry, Agradeço pelo carinho, obrigado, belo dia, beijos!

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  7. Muito bom!
    De facto, ninguém merece!
    PQP!!!!!
    Beijo

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  8. Olá Rosa, e que tudo esteja bem!

    Belo conto, bem situado no viver do homem nestes tempos!
    Quando um indivíduo valoriza o mesquinho e negligencia a própria existência com certeza a tragédia está a caminho, somente aguarda o momento para se anunciar, além do que, não gostamos de nada ou ninguém antes de gostar de nós mesmos!
    E assim grato por compartilhar teus belos pensamentos e amizade em tuas gentis visitas eu deixo meu desejo para que seja sempre tão feliz e intenso o teu viver, um grande abraço e, até mais!

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  9. Um conto muito triste por causa de
    um nome..mas cada um tem seu jeito de
    viver, era um moço simples e bom , e veja
    como termina a vida dele......gostei

    Abraços com carinho!

    └──●► *Rita!!

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  10. Hoje, com mais tempo, percorri o seu Blogue.
    Adorei, os contos me fascinam e os seus são muito bem estruturados.
    Muitas vezes me vai encontrar por aqui pois é este género de literatura que me fascina.


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  11. Oie lindona..minha poetisa favorita rsrsrs..nossa por causa de um nome em kkkk acredita que eu tinha uma freguesa que se chamava Bucetildes kkkkkkkk..puts grilo ...queridinha estou em ritmo do HOHOHOHO aparece para curtir meu lay de Natal......feliz semaninha..e ñ esqueça de meu niver..vai ser no dia 20/11 ...vai bombar kkkkkk comidinhas de buteco ..vc ñ vai perder nê kkkkkkk beijus dolu vc fuiiiii

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  12. Minha querida

    Um conto que adorei ler e pode acontecer na vida real.

    Um beijinho com carinho
    Sonhadora

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  13. Caramba, como a vida de uma pessoa pode sair dos eixos por uma sucessão de infelizes incidentes.
    Gostei muito do seu conto, da sua forma viva de escrever.
    Beijinho, um doce fim-de-semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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  14. Adorei ler esse conto amiga, porque causa do nome o homem ficou pobre
    e assassino.você é brilhante em tudo que escreve. Amiga fiz uma
    sala de natal, quando puder vá conhecer e traga uma lembrancinha se gostar .
    Super abraço pra ti.

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  15. Blog: http://passosdefe.zip.net/

    oi, boa noite!
    estou começando a blogar agora por insistência da minha mamily e confesso que estou começando a gostar. Hoje estou visitando alguns blogs para ir me adaptando a este belíssimo universo. toda a arte é ela quem está fazendo para mim, por enquanto, ainda tenho muito o q aprender, mas um dia eu chego lá! venha fazer-me uma visitinha e se gostar do conteúdo do meu espaço, te ofereço o meu award com carinho. abraços! Thays Henry.

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  16. Quantas reviravoltas na vida desse homem o.O Achei o conto surpreendente e gostei muito dos rumos inusitados que ele tomou... Imagine uma pessoa se tornar assassina por causa do nome e de um bilhete de loteria... Muito criativo!
    Beijos,
    Niki,
    http://www.meigaemalefica.blogspot.com
    http://www.randomcast.com.br

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  17. Boa noite, Rosa.
    Quanta ira Guto carregava por um sobrenome, tanta que não conseguia se controlar, e por causa disso poderia ser milionário e não foi, ainda virou assassino, desnecessário.
    Ele se deixou dominar pelo seu temperamento colérico, e desde criança que não conseguia conviver com essa situação.
    Era algo que ele deveria tentar administrar mas não o fez.
    A vingança só evidenciou o seu nome aos quatro cantos por mais que ele quisesse esconder.
    Sem dinheiro, sem vida, um foragido?
    Compensa? Creio que não.
    Perfeito o seu conto.
    Você é MARAVILHOSA!
    Sou sua fã!
    Beijos na alma e excelente dezembro de paz!

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  18. Olá, Rosa!!!

    Puxa, vida!! O que já era ruim ficou pior na vida do Gumercindo!
    Só você Rosa!rs

    Deixo meus votos de boas festas, e que Deus te abençoe e aos seus!!
    Te desejo muito sucesso e alegrias para o ano que vem ai! Bjs

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  19. Olá!Boa Tarde...Rosa!
    de nada, obrigado à vc,pelo carinho, comigo, sempre!
    Desejos de uma feliz final de semana, muita paz e luz, beijos!

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  20. Rosa, como vai?
    Tenho acompanhado a trajetória do seu novo livro, escreves muito bem e merece reconhecimento. Que seu Natal seja encantador, com muitos momentos felizes para lembrar e que 2014 seja ainda mais incrível e cheio de sucesso. Um abraço!

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  21. Oie doladinha que saudades..estou voltando ..para vcs amiguxos blogueirinhos...vim desejar a vc e familia um Feliz Natal !!!
    "Que o Menino Jesus traga consigo a sua bendita Luz para iluminar seus caminhos e abençoar sua família, que assim seja!"Amém..dolu vc amiguinha ...aparece ..tem mimo de Natal para ti!!!!!b-jus

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  22. Oi Rosa

    De Rego grande a assassino involuntário este realmente nasceu para o martírio.

    Tenho acompanhado o sucesso do seu livro e fico muito feliz por você. Parabéns!

    Desejo muitas felicidades neste Natal e muitas conquistas e alegrias em 2014!

    Beijos

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